Written by: Feminismo Negro

A opressão que não sentes, a opressão que não vês

As relações raciais também são desiguais no Feminismo

1. Disparidades no âmago da opressão

Mulheres são submetidas ao jugo patriarcal a datar dos primórdios da humanidade. Desde eras longínquas, a hierarquia sexual na qual machos alocam-se no topo e fêmeas instalam-se às bases, moldou-nos a percepção, cultura, religião e ademais, a subjetividade. Por intermédio da socialização (feminina e masculina), fêmeas e machos são incumbidos a realizarem performances de acordo com o gênero que fora-lhes imposto. Tais incumbências sociais estruturam-se em modos estereotipados, sexistas e demasiado extirpadores. Especialmente, àqueles atribuídos às mulheres.

Entretanto, mulher, apesar de uma categoria demarcada sob a insígnia da materialidade biológica, mantém sub-divisões e interconexões relativas às demais hierarquias vigentes em uma sociedade concomitantemente patriarcal, racista e classista. As particularidades da opressão, manifestam-se por intermédio de delineadas nuances as quais, além de baseadas no sexo, baseiam-se na etnia e classe. Ambos, homens e mulheres brancas, obtêm posição superior à mulheres e homens racializados, especialmente, negros. Mulheres brancas submetem-se forçosamente à opressão patriarcal, entretanto, graças à estrutura racista na qual indivíduos caucasianos representam o conceito imagético, social e político de humanidade e racionalidade, mulheres negras alocam-se em uma negação composta de sua mulheridade e humanidade. Deste modo, mulheres brancas, podem ocupar simultaneamente a incumbência de algozes e vítimas.

Na pirâmide do racismo estrutural, a mulher branca permanece abaixo do homem branco. Contudo, ambos, socialmente superiores à indivíduos pretos, exercem seu jugo sobre eles. Deste modo, surgem os intitulados: “níveis da opressão”.

2. “The Help”: A disparidade em prática

Uma fidedigna exemplificação da opressão seccionada, faz-se presente no longa-metragem indo-emirático-estadunidense The Help (Histórias Cruzadas).

Imagem promocional para o longa metragem “The Help”.

Deparamo-nos com a sociedade extremamente racista e patriarcal do Mississippi (EUA) nos anos 1960. A temática central constitui-se no antagonismo entre as experiências de mulheres negras, que em sua maioria tratavam-se de empregadas domésticas, residiam em habitações precárias e permaneciam expostas à pobreza; e mulheres brancas, ricas e arquétipo da american housewife (dona de casa americana). Nesta narrativa, caucasianas descendentes de famílias tradicionalmente escravagistas, sofriam o machismo de seus maridos e a opressão patriarcal emanada da sociedade. Entretanto, as tais possuíam poder para submeter suas empregadas domésticas, mulheres pretas descendentes de escravizados que, ademais, submeter-se-iam também aos homens negros. Mulheres brancas sofriam o jugo de maridos e semelhantes brancos, mulheres pretas sofriam o jugo de homens brancos, mulheres brancas e homens negros. As personagens caucasianas tratavam suas serviçais tal sub-humanas, propondo-lhes que utilizassem banheiros diferenciados, para que não transmitissem “doenças que somente pretos têm”. O contexto racial modificara o jogo da opressão no âmbito deste filme, tal modifica o âmbito vigente em nossa sociedade. A opressão racial trata-se de uma instância tão poderosa e estrutural quanto a opressão baseada em sexo. Ambas operam concomitantemente e produzem um sistema de relações de poder e submissão complexo.

Segundo Angela Davis, a subordinação de mulheres pretas às brancas, trata-se de um dos legados da escravidão o qual permanece a influenciar as dinâmicas sexuais e raciais.

“[…] Facilmente implicando que as mulheres pretas diferem das mulheres brancas na medida que as lides domésticas faziam parte das obrigações escravagistas.”

— DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. p. 09.

Na atualidade, a socialização de mulheres brancas e pretas permanece diferenciada. Caucasianas socializam-se para que tornem-se “princesas delicadas”, mães de família, gentis, compassivas, castas e recatadas. Contudo, afro-descendentes são socializadas para tornarem-se as empregadas da “mãe de família”, as prostitutas promíscuas, agressivas, silenciadas e ausentes de traquejo social ou construção positiva em relação a sua própria aparência.

Mulheres brancas possuem poder estrutural para que oprimam mulheres pretas. Não há equidade sequer entre mulheres. Ocorre igualmente no feminismo.

3. As Dinâmicas da Opressão e o Movimento Feminista

O início demarca a continuidade. O feminismo, tal movimento social auto-organizado, surgira da atuação de mulheres majoritariamente brancas, de classe média e pertencentes à Europa Ocidental e América do Norte. Haja vista que a opressão sofrida por mulheres brancas e pretas possui diferenciações, havia uma tendência à maximização das pautas as quais culminariam na emancipação de mulheres caucasianas. Enquanto as mesmas concebiam-se tal inferiores sob a ótica do homem branco, mulheres pretas eram concebidas tal inferiores sob a ótica de ambos e, usualmente, afastadas da militância.

Parada do Sufrágio Feminista em New York, 6 de maio de 1912.

Tal padrão, perpetuara-se e atualmente mantém-se nas esferas feministas. Mulheres brancas mantiveram-se “aptas” a lutarem pela emancipação, pois, alocavam-se em posição hierárquica superior e possuíam o poder que jamais fora atribuído às mulheres pretas e racializadas. Tal sintoma perdura na contemporaneidade. Apesar de mulheres pretas estarem a produzir teoria, militância e pautas, seus discursos permanecem a ser deslegitimados em relação às pautas do “feminismo branco”.

As pautas estabelecidas por mulheres brancas, avançam consideravelmente. Contudo, mulheres pretas afundam-se nas maiores estatísticas de assassinato, pobreza e analfabetismo em Brasil. Trago-vos um exemplo: mulheres brancas permanecem a militar pelo direito de conduzir seus filhos à todos os espaços, amamentação pública e maiores períodos de licença maternidade. Porém, mães negras lutam diariamente para que seus filhos não tornem-se vítimas do genocídio nas favelas, coagidos ou seduzidos ao tráfico e jazam assassinados por um Estado racista e necropolítico, com seus corpos torturados sendo abandonados em valas, vielas e… esgotos.

“Alguns problemas nós dividimos como mulheres, outros, não. Vós [mulheres brancas], temeis que suas crianças cresçam, se somem ao Patriarcado e testemunhem contra vós; nós [mulheres negras] tememos que nossas crianças sejam arrastadas de um carro e abatidas na rua, e vós virareis as costas para as razões pelas quais elas estão morrendo.”

— Audre Lorde

Mulheres pretas tratam-se das mais vitimadas pela violência doméstica e abandono marital em Brasil. Possuem o maior percentual de famílias desestruturadas e tratam-se das maiores vítimas fatais de abortos clandestinos. Todavia, tais pautas sob uma ótica racial, raramente destacam-se nas vertentes feministas. Debate-se imenso a respeito de direitos os quais sequer comparam-se àqueles que diariamente são negados às mulheres pretas. Suas pautas são relegadas ao esquecimento, quando não produzem lucro ou podem ser utilizadas tal token(*). Feministas brancas não estão verdadeiramente interessadas em uma igualdade entre mulheres. Mulheres pretas, estruturam-se e erguem-se através das militâncias, há décadas.

Determinadas feministas intentam em aliarem-se às mulheres negras, entretanto, não consideram o próprio racismo internalizado. Enquanto indivíduos brancos, é-lhes usual tentar expurgar a sensação de “dívida histórica” por intermédio da crença de que caso unam-se às causas raciais ou feminismo negro, seus privilégios serão magicamente desintegrados ou “perdoados”. A disparidade étnica e afromisoginia da sociedade, inviabiliza a rapidez na emancipação de mulheres pretas.

Mulher não trata-se de uma categoria homogênea. A opressão tece-se para além do gênero imposto e o sexo.

4. A síndrome da “brancoexplicação”

Trago-vos um termo derivado do mansplaining (homexplicação) o qual, mantém-se cotidianamente presente nos trajetos de mulheres pretas intelectuais e militantes. Usualmente, quando discursam ou posicionam-se em eventos, rodas de conversa e debates feministas, são interrompidas por companheiras brancas as quais exemplificam exatamente o que estavam a partilhar e agem tal a argumentação houvesse brotado de si próprias. Ademais, intentam em explicar-lhes conceitos básicos do feminismo ou partem do pressuposto de que não conhecem-nos. Através de atos aparentemente sutis, feministas reproduzem o racismo estrutural e suas nuances impregnadas em movimentos sociais.

Em Brasil, indivíduos brancos possuem maior acesso à educação e condições de permanência em instituições de ensino. A taxa de analfabetismo entre pardos e pretos atinge graus alarmantes. Tais ocorrências, são sintomas das desigualdades raciais implementadas neste país desde a colonização. O estereótipo o qual relaciona indivíduos negros à ignorância e corrobora na errônea percepção de que os tais dificilmente serão cultos ou sábios, destaca-se subliminarmente no âmbito feminista.

Determinadas feministas cogitam que carecem de “ensinarem-nos algo” ou corrigirem minunciosamente cada um de nossos discursos. Vigora o anseio em demonstrar superioridade e demarcar territórios. Delimitar a atuação de mulheres pretas intelectuais, no intuito de que não “causem alvoroço”, ampliem o foco às suas pautas e denunciem o racismo no movimento. Somos silenciadas, e, caso desejemos ser ouvidas… carecemos de modificar-nos o discurso.

Imagem retirada da internet

Minorias possuem seu direito à livre-expressão, continuamente cerceado. Acostumamo-nos a não contemplar suas manifestações, falas ou reações. Acostumamo-nos demasiadamente a visualizar compassividade e subserviência em mulheres negras. Quando uma feminista negra não reproduz tais hábitos em relação às feministas brancas, rapidamente emergem estereótipos racistas: “és tão estressada”, “estás sendo agressiva”, “por que não tentas explicar quando estiveres calma?”, “não consigo entendê-la”. Alguns indivíduos caucasianos desejam apoiar as causas raciais, desde que sejam eles a falarem, liderarem e alimentarem o próprio ego. Desejam que falemos, contudo, não que tornemo-nos lideranças no âmbito feminista. Mulheres pretas detêm autonomia, inteligência e capacidade para lutarem por si mesmas. Tudo de que carecemos trata-se de espaço e receptividade aos nossos discursos. Tal dizia Viola Davis: A única coisa que separa as mulheres pretas de qualquer outra pessoa é oportunidade.

5. “Como posso melhorar?”

O racismo e afromisoginia tornaram-se tão internalizados, que por vezes, ainda que não percebam, mulheres brancas estão a reproduzirem sistemas de opressão e é-lhes um dever aboli-los. Primeiramente, carece-se de ouvir mulheres pretas.

Não almejamos receber de vós a voz, mas sim, os ouvidos. Pois, há décadas mulheres tais Angela Davis, Bell Hooks, Audre Lorde têm erguido suas vozes a respeito das estruturas raciais e opressões as quais atingem particularmente mulheres negras. Assumir privilégios e cessar a reprodução de falácias tais a crença em uma “unidade entre mulheres” ou “democracia racial”, trata-se de um notório progresso.

Manter-se útil às mulheres pretas sem necessitar passar-lhes à frente em suas próprias pautas ou apropriar-se de seus discursos, tornará a experiência coletiva infinitamente superior. Faz-se necessário perceber que nós possuímos voz, não somos inferiores e erguer-nos-emos juntamente às pautas. Bradaremos tal nossas ancestrais. Tu podes optar por bradar conosco ou contra nós.

Questionem-vos acerca de como podereis tornar as relações no feminismo menos desiguais. Mulheres pretas não carecem de vossas vozes, carecemos do espaço. Carecemos da oportunidade. Carecemos do poder.

Mulheres integrantes do movimento “Black Panther”, EUA.

(*) Token é quando alguém apropria-se de uma opressão (ou minoria) que não faz parte de sua vivência, no intuito de justificar, defender ou explanar o seu ponto de vista.

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Tags:, Last modified: 1 de agosto de 2021