Written by: Feminismo Negro

O mito da “raça em primeiro em lugar”

Por que ainda teimamos em pensar que há uma “hierarquia da opressão”?

Em todos os anos nalgum período específico, seja por conta de mais um episódio relacionado à estrutura racial opressiva ou do cruzamento entre a hierarquia racial e a exploração capitalista sobre as classes racializadas, o discurso falacioso da “hierarquia de opressão”, suposição na qual uma espécie de domínio aloca-se como superior a outra, tende a surgir. Neste cenário, determinados indivíduos — maioritariamente do sexo masculino — tendem a argumentar que a opressão racial está acima da opressão sexual e que, por conseguinte, mulheres negras acabariam por ser “mais oprimidas” pelo fato de serem negras e não por também pertencerem à classe sexual feminina. Entretanto, tal discurso não sustenta-se em si. 

Afinal, como recordado através da teorização de pensadoras negras como Audre Lorde, Lélia Gonzalez e Kimberlé Williams Crenshaw, os marcadores sociais os quais constituem indivíduos marginalizados em uma sociedade estratificada manifestam-se de modo integrado e concomitante. Mulheres negras não são oprimidas primeiramente por serem negras e segundamente por serem mulheres, mas sim, pela soma de fatores que compreendem a sua realidade racial e sexual. 

As mulheres negras podem sofrer discriminação de várias maneiras e a contradição surge de nossas suposições de que suas reivindicações de exclusão devem ser unidirecionais. Estou sugerindo que as mulheres negras podem sofrer discriminação de maneiras que são semelhantes e diferentes daquelas experimentadas por mulheres brancas e homens negros. As mulheres negras às vezes sofrem discriminação de maneiras semelhantes às experiências das mulheres brancas; às vezes, elas compartilham experiências muito semelhantes com homens negros. No entanto, muitas vezes elas experimentam dupla discriminação — os efeitos combinados de práticas que discriminam com base na raça e com base no sexo. E às vezes, elas sofrem discriminação como mulheres negras – não a soma da discriminação de raça e sexo, mas como mulheres negras. As experiências das mulheres negras são muito mais amplas do que as categorias gerais que o discurso da discriminação oferece. No entanto, há insistência contínua para que as demandas e necessidades das mulheres negras sejam filtradas.

—  Kimberlé Williams Crenshaw, livro “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex”

A união entre a classe sexual e racial produz sobre mulheres negras efeitos específicos os quais não recaem de modo idêntico sobre homens negros ou mulheres brancas. Neste contexto, pode-se citar o fator socioeconômico. Os dados mais recentes do IBGE indicam que 77% dos extremamente pobres no Brasil são negros; destes, 40% são mulheres negras e 37% homens negros

Ademais, faz-se necessário compreender que determinados homens negros utilizam-se da falácia da repressão racial enquanto primeiro modo de opressão, a fim de jamais questionar as violações patriarcais que ocorrem no interior das comunidades negras. Jamais devemos esquecer-nos de que não houve um período no qual os direitos específicos das mulheres negras foram inteiramente reivindicados ou respeitados.

Além de ilógica, a suposição de que a opressão racial antecede à opressão feminina é historicamente incongruente. Afinal, sociedades patriarcais são datadas há mais de dois mil anos, sendo o sexo biológico uma das primeiras razões na História pelas quais um indivíduo humano foi escravizado.

Da minha participação em todos esses grupos, aprendi que opressão e intolerância de diferenças aparecem em todas as formas e sexos e cores e sexualidades — e que entre aquelas de nós que compartilham objetivos de libertação e um futuro viável para nossas crianças, não pode existir hierarquia de opressão. Eu aprendi que sexismo e heterossexismo surgem da mesma fonte do racismo. […] Eu não posso me dar ao luxo de lutar contra uma forma de opressão apenas. Não posso me permitir acreditar que ser livre de intolerância é um direito de um grupo particular. E eu não posso tomar a liberdade de escolher entre as frentes nas quais devo batalhar contra essas forças de discriminação, onde quer que elas apareçam para me destruir. E quando elas aparecem para me destruir, não demorará muito a aparecerem para destruir você.

— Audre Lorde, texto “não existe hierarquia de opressão”

Alegar que a raça está em primeiro lugar, para além de fantasioso, remete à uma história focada na ótica masculina. Afinal, somente os homens podem ter apenas a raça enquanto fator opressivo. Mulheres sempre estarão sob o jugo da opressão sexual. Deste modo, questiono, a quem beneficia afirmar que a opressão racial está acima da opressão sexual?

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Tags:, Last modified: 4 de setembro de 2021