Written by: Colunistas Convidadas

A Realidade do Feminismo Angolano

Como mulheres a opressão sexista é transversal a todas. Uma opressão política e histórica
ligada à nossa biologia.

Artigo produzido por Tchenguita

Entretanto, esta opressão ocorre de diferentes modos nas diferentes culturas. Compreender isto é essencial para o fortalecimento dos movimentos políticos para a libertação das mulheres pelo mundo e para uma luta que entenda que o sistema patriarcal tem diferentes facetas. Além disto, devemos ter em consideração sempre, nas nossas abordagens, que as mulheres mesmo fora das suas culturas – como é o caso das mulheres africanas – também têm de lidar com diferentes formas de opressão que, como diz Grada Kilomba (2019) “não sabem se sofrem por serem mulheres, por serem negras ou por serem os dois em simultâneo”.

A forma de mobilização de mulheres é também diferente. No caso concreto de Angola, o movimento feminista apesar de recente tem um histórico de organização de mulheres da sociedade civil por trás, estas organizações contribuíram de modo significativo para o olhar da situação da mulher na sociedade angolana. Apesar de não serem movimentos feministas, motivadas por factores denominados por Cutaia e Mouzinho (2017) como endógenos e exógenos, estas mulheres contribuíram significativamente para a discussão de pautas ligadas à mulher.

Entrento, estas motivações diminuem de alguma forma a eficácia da implementação das políticas públicas voltadas à mulher. O principal factor extra organizacional é a própria limitação ideológica e de agendas políticas por parte do Estado. Angola vive num regime semi-ditatorial com o mesmo partido no governo desde a sua independência, fazendo com que muitas organizações se curvem às suas agendas, o que torna a implementação de políticas públicas voltadas às mulheres muito mais difíceis, pois, o regime para além de “totalitarista” e militarista é comandado por homens e, portanto, patriarcal.

O factor central intra organizacional está ligada “à ideologia conservadora de género que muitas delas abraçam, muitas vezes sustentada por crenças religiosas” Cutaia e Mouzinho (2017). Actualmente, África é um dos continentes com maior influência da religião cristã no mundo, fruto de 500 anos de escravidão e colonização, a sociedade angolana é regida por princípios religiosos, o que faz com que mulheres mesmo dentro de organizações civis de mulheres tomem decisões baseadas nestes princípios.

O direito ao aborto, por exemplo, implementado em Fevereiro de 2017, criminalizando a prática, teve a discussão por parte das mulheres das organizações civis baseada na moral e não nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres que incluem a saúde pública. Para além da religião, alguns hábitos culturalmente africanos e enraizados nas mulheres também têm um peso muito grande na tomada de decisões das mulheres. À luz disto, apesar de termos na nossa história mulheres que bateram de frente com o patriarcado, a escravidão e a colonização: Nzinga Mbandi, Lueji Ya Nkonde, Kimpa Vita, Deolinda Rodrigues; mulheres que estiveram na linha de frente na luta pela libertação – Esquadrão Kamy – e mulheres que lutaram durante a guerra civil – Batalhão 89 –; não tivemos movimentos abertamente feministas até 2016.

Antes disto, tivemos mulheres que individualmente se declaravam feministas, na sua maioria Feministas Africanas, como o caso de Sizaltina Cutaia, Âurea Mouzinho e Cecília Kitombe; pouquíssimas, ou apenas uma que se denominava Feminista Radical: Mel Gâmboa. Aliás, a maior parte das mulheres que abraçaram o feminismo dos anos 2014 a 2018 tiveram uma certa influência no activismo digital – com o Facebook como principal plataforma – de Mel Gâmboa. O que de certo modo impactou a nossa sociedade e “obrigou” as mulheres olharem e reflctirem de outra maneira as violências sistemáticas que sofriam e consideravam normais.

As redes sociais tiveram um impacto muito forte no novo modo de se pensar a posição da mulher na sociedade, fora das organizações femininas, na sua maioria religiosas e políticas, foi a partir das plataformas digitais que a mulher angolana ousou questionar o patriarcado e as suas diferentes formas de opressão. Sendo uma sociedade à busca pela sua identificação – por causa do hiato violento de 500 anos entre as suas raízes e o seu eu – muitas mulheres recusavam-se e, ainda recusam, denominarem-se feministas, pois, uma das maiores dificuldades dentro do movimento que, cada vez mais tem crescido em Angola, é de acabar com a ideia de que o feminismo é importação ocidental, pois tem sido o argumento usado com maior frequência por quem é nitidamente contra o movimento.

No entanto, não nos esqueçamos que apesar do nome feminismo ter na sua etimologia o ocidente, a luta feminista sempre existiu no continente, principalmente em Angola, incubadora de grandes nomes femininos símbolos de resistência tanto contra o sexismo como contra o capitalismo e o racismo. Actualmente, o país se encontra na fase de transição – ainda tímida – do feminismo digital para um feminismo mais presencial, onde grupos de mulheres se reúnem para discutir sobre os seus direitos e como organizarem para os conseguirem. O movimento Ondjango Feminista, pioneiro na organização política de mulheres feministas, tem sido um destes espaços. Criado há cinco anos, é o lugar onde se discute políticas públicas e soluções para as implementações das mesmas.

Angola, apesar de naturalmente rico, é um país pobre, com o nível de pobreza cada dia mais alarmante, e o seu principal rosto é a mulher. Assolado pela seca a Sul, pelas enchentes mais a Norte, pela exploração capitalista de diamantes e petróleo a Leste e a Norte, tais fenómenos afectam profundamente as mulheres. Para Malomalo (2020) apesar da exploração sexual ser alimentada pela pobreza e transversal a várias regiões do mundo, as comunidades mineiras apresentam maiores incidências, sendo as mulheres e meninas destas regiões mais vulneráveis, como é o caso da província da Lunda Sul em Angola. “Isso se deve à complexidade das comunidades de mineração como zonas de disputa entre prosperidade económica e violações graves dos direitos humanos” Malomalo (2020).

Angola apresenta também um alto nível de casamento infantil, 30% das meninas são casadas antes dos de 18 anos de idade, 8% antes dos 15 anos. Angola tem, ainda, a segunda maior taxa de gravidez precoce da África subsariana, estando atrás apenas da República Democrática do Congo. “A nível nacional, Lunda Sul é tida como a província com um índice de gravidez precoce mais elevada de 59.79% segundo INE por falta de informações sobre sexualidade e serviços amigáveis aos jovens.” Mawana Pwo (2021). As mulheres angolanas estão em desvantagem inclusive no que concerne ao acesso ao emprego no sector formal, dados apontam que apenas 34% das mulheres dos 15 aos 64 anos estão empregadas formalmente, no entanto, quando passamos os dados para o sector informal verificamos que 86% das mulheres dominam este mercado. Kitombe (2020).

A seca afecta de modo considerável as mulheres do Sul, nas províncias da Huíla, Namibe e Cunene. Numa visita de trabalho feita por Cecília Kitombe ao município da Humpata, província da Huíla, constatou que nas comunidades haviam mais crianças, mulheres e adolescentes mães, e idosos. Os homens jovens haviam migrado para as zonas urbanas, à procura de melhores de condições de vida. Deixando as mulheres e os filhos para trás; e os familiares dos jovens não apoiam estas mulheres, seja por falta de recursos também ou por não quererem assumir as responsabilidades dos filhos.

Nestas zonas a pobreza menstrual é uma realidade. Kitombe conta que quando questionou “em particular as meninas como faziam para se manterem higiénicas enquanto vivenciam o período menstrual, a resposta foi arrasadora! Responderam-me que fazem cortes nos seus próprios panos (indumentária presente e usada por toda a comunidade, desde homens, crianças e mulheres). Usam os recortes dos panos dia-pós-dia, enquanto durar o período menstrual. Por falta de água para a higienização, elas guardam os pedaços dos panos com sangue em algum lugar “secreto”, até aparecer água para os lavar (podendo ficar guardados mais de dois meses)” Kitombe (2021).

Mas as mulheres são também a força motriz para a sobrevivência dessas comunidades: “a título de exemplo, encontramos um grupo de mulheres a escavar o buraco onde será implantada a quinta cisterna calçadão, e elas também fazem parte do ‘grupo água e saneamento’ que foi constituído para cuidar da cisterna calçadão e garantir a sustentabilidade daquele projecto” Kitombe (2021).

Estes são alguns dos desafios que enquanto feministas temos: fazer pressão ao Estado em relação a desigualdade social das mulheres por todo o país, entretanto, não são apenas de desafios que vivemos, cada vez mais tem nascido colectivos e movimentos sociais de mulheres e meninas declaradamente feministas que se propõem a discutir a situação da mulher, as agendas e pautas mais urgentes, numa vertente mais política. Movimentos estes que têm procurado ser auto-sustentáveis, muitos dos quais têm acolhido mulheres em situação de exploração sexual ou gravidez precoce como é o caso da Assojom, associação fundada por Ângela Samanjolo.

Diferente das outras regiões do mundo, onde os direitos das mulheres começaram a ser discutidos dentro das academias, Angola começou nas ruas, nas plataformas digitais, o que não é mau, pois o obejctivo é fazer chegar a todas as mulheres os seus direitos. Porém, há a preocupação de muitas estudiosas feministas angolanas colocarem a discussão sobre os direitos das mulheres nas universidades do país, como o caso de Florita Telo, Doutora em Estudos de Género, Mulheres e Feminismo; pesquisadora do Centro de Cidadania e Direitos Humanos na Universidade Católica de Angola.

Portanto, o que começou como um movimento tímido e sem muita experiência tem se tornado cada vez mais num movimento grande, com mulheres dedicadas à causa que enfrentam os obstáculos implementados pelo patriarcado diariamente, não tem sido fácil, mas temos esperança que teremos avanços que impactem positivamente a vida das mulheres angolanas. Que sejamos todas, parte de um grande movimento mundial pelos nossos direitos e que consigamos derrubar realmente o patriarcado. Sem nenhuma mulher a menos!

Referências Bibliográficas
ASSOCIAÇÃO MWANA PWO. Apenas uma criança. Lunda Sul, 1ª Edição, p. (3-8), s/m, 2021.
CUTAIA E MOUZINHO. Reflections on Feminist Organising in Angola. Feminist Africa, Cape Town, 22ª Edição, p. (33-51), Dezembro, 2017.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação – Episódios de Racismo Quotidiano. Lisboa, 2019.
KITOMBE, Cecília. Editorial – Resistência económica das mulheres: um desafio diário. Tuba, Luanda, 4ª Edição, p. (7-10), Junho, 2020.
KITOMBE, Cecília. Fome e Seca Deixam Mulheres e Meninas Sem Esperança: Uma Realidade na Comuna da Bata-Bata – Huíla. Luanda, Ondjango Feminista. MALOMALO, Maria. Interface Económica – Comunidades mineiras, exploração sexual de meninas e mulheres jovens. Tuba, Luanda, 4ª Edição, p. (41-51), Junho, 2020.

Tchenguita – Medium
Fonte: arquivo pessoal

Maria Luísa é seu nome de registo, mas é o nome Tchenguita, dado na infância, que a identifica e a torna parte de seu país. Nascida em 1996, foi em 2014 que conheceu o feminismo e desde lá, estuda e investiga sobre o mesmo tentando contextualiza-lo à sua realidade. Fez o Ensino da Língua Portuguesa no Ensino Superior e vê a Literatura como um dos meios de trazer o feminismo à discussão e reflexão. O Ondjango Feminista tem sido o lugar que mais liberdade tem de aprender e dizer o que tem para ensinar às outras mulheres.

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Tags:, , Last modified: 4 de outubro de 2021