Nos últimos dias, o rapper Djonga lançou um novo álbum intitulado “O Dono do Lugar”. Com uma capa na qual o artista surge amparado por duas mulheres negras, a proposta da coletânea musical, segundo o cantor, é trazer à superfície alguns temas que lhe são caros, como a masculinidade e a violência sofrida por homens negros. Com um discurso antirracista consolidado, o artista é conhecido por suas letras de teor realista e crítico ao cenário brasileiro. Dentre as faixas do álbum citado, “Conversa com uma Menina Branca” recebeu especial atenção da parte do público por conta do cenário construído pela canção.
Na letra, o eu lírico (Djonga) afirma que esteve em diálogo com uma menina branca no qual ambos explicitam as dificuldades sofridas em razão de sua opressão. Entretanto, a menina branca tenta “comparar-se” ao seu eu lírico, ingressando em um embate de opressões que é finalizado com a mesma, que o acusa de agressividade, acionando a polícia. Ao decorrer da narrativa, percebe-se que a personagem branca é caracterizada como fútil e ingênua, intentando criar comparações em cenários nos quais negros são historicamente desprivilegiados. Por exemplo: “Eu tive uma conversa com uma menina branca e poucas / E, com 25, ela vendeu droga pra comprar umas roupa / E eu que vi com 13 meu primo tipo na vida loka / Com 25, já teria 12 anos de boca”.
Aplaudida por alguns e criticada por outros, a canção recebeu imenso destaque por explanar, em curtos versos, uma linha de pensamento que tem se consolidado há anos no movimento negro: a mulher branca como agente principal da opressão racial. Nessa perspectiva, mulheres brancas tendem a ser o maior alvo de rechaço, punições sociais e críticas em decorrência do racismo, enquanto homens brancos permanecem perpetuando o status de “intocáveis”. Tal fenômeno social ocorre por conta de inúmeros fatores, mas um dos principais se trata da estratificação da classe feminina e dos seus benefícios para os agrupamentos masculinos.
Afinal, ao longo dos séculos, mulheres foram estratificadas em castas a fim de que o domínio masculino se mantivesse estável através do constante fomento de disputas e disparidades dentro da classe. Pois, edificando um sistema no qual determinado grupo de mulheres receberia poder para oprimir e legislar sobre a vida de outras em razão de raça ou status econômico, a hostilidade horizontal seria maximizada, conduzindo as mulheres oprimidas ao ódio único e exclusivo às mulheres que lhes oprimissem, esquecendo-se assim do agente de opressão principal que ambas têm em comum: os homens.
Não coincidentemente, ao longo das décadas algumas alas masculinas do movimento negro investiram no mito da mulher branca como o maior algoz. Pois, quanto mais o ódio de mulheres negras fosse direcionado às mulheres brancas, mais neutras se tornariam as suas percepções sobre as opressões que sofrem da parte de homens brancos e negros. Beneficiando assim ambos os setores masculinos. Afinal, de um lado temos as mulheres negras devotando suas vidas aos cuidados dos homens negros, e do outro temos as mulheres brancas devotando suas vidas aos cuidados dos homens brancos. Ambas inferiores na hierarquia sexual da sua etnia, mas ainda assim, considerando-se maiores rivais e jamais hostilizando aqueles que mais se beneficiam desse sistema.
É deveras sintomático que o personagem da canção seja uma mulher branca, ao invés de um homem branco, que poderia servir como um antagonista muito mais apurado, por ser de fato o perfil mais beneficiado por ambas as estruturas e ter o mesmo sexo que o eu lírico. Mas a escolha da mulher branca mobiliza sentimentos misóginos que nos conduzem a percebê-la como fútil, mesquinha e maledicente com maior facilidade. Não obstante, a letra vale-se disso para ter ares de relativização de uma violência sexual sofrida pela mulher branca em comparação com a de outra personagem negra: “Em uma conversa com uma menina branca / Ela disse que odeia as cantada no busão / É nojento, eles passam a mão, que não anda mais de busão / E a moça da área que foi abusada no busão / Enquanto o caso tá em apuração ainda é cobradora no busão”.
Se faz necessário jamais esquecer-se do fato de que o privilégio racial concedido às mulheres brancas não as protege da misoginia. Na história recente temos exemplos contundentes como a própria cantora Britney Spears, que mesmo caucasiana, loira, rica e norte-americana, foi tratada de forma sub-humana por mais de 10 anos com o aval da justiça. Não podemos nos esquecer, igualmente, que a epidemia de feminicídios, estupros, abuso sexual e violência doméstica não é causada por mulheres brancas e tampouco por mulheres negras. Não podemos nos esquecer quem é que nos abandona em hospitais quando adoecemos, ou não nos visita nos presídios se infringimos a Lei.
O ódio de uma classe oprimida é um bem demasiadamente valioso, e o ódio da classe feminina tem sido manipulado em todo o mundo, por homens de todas as etnias, para dele extraírem benefícios. Afinal, quanto mais divididas, menos ação social e mais possibilidade de aceitação de papéis servis a fim de manter a consolidação da identidade. Como no caso de algumas alas do nacionalismo negro e entre outros que atribuem às mulheres o dever de edificar uma “nação negra” através da natalidade. Acreditar que mulheres brancas são as nossas maiores algozes, enquanto somos mortas, estupradas, abusadas e abandonadas por homens negros, brancos e mestiços, serve a quem?