Written by: Feminismo Raiz

Notas desconfortáveis sobre a não-monogamia

Ao longo da história humana, os indivíduos se auto-organizaram a fim de estabelecer relações entre si que pudessem sustentar o modelo social escolhido pelos dominantes. E, como podemos averiguar através de obras como A Criação do Patriarcado de Gerda Lerner, desde a ascensão masculina há mais de dois mil anos, os homens têm ditado socialmente os rumos dos relacionamentos entre eles e as mulheres. Não obstante, sabemos que o acréscimo de fatores tais como a hierarquia racial e o surgimento e aperfeiçoamento do sistema de posses no capital (capitalismo) e na atualidade, do próprio neocapitalismo, influenciam de forma acentuada a teia que foi construída há séculos.

Em um primeiro momento, a imposição da monogamia em determinadas comunidades e protótipos de sociedades, se deu a partir do desejo de centralização do renome da dinastia (realeza / império), do capital social (bens imateriais) e do capital físico (bens materiais). Nesse cenário, no qual a mulher possuía a atribuição exclusiva da procriação e dos cuidados com os herdeiros, sendo assim mais um objeto na ala de “bens materiais” dos homens de suas comunidades, a monogamia se mostrava como uma alternativa interessante à sociedade construída sob a perspectiva dos homens.

Afinal, até mesmo quando contatamos escritos de algumas sociedades primárias, percebemos que era implícito e por vezes explícito que o homem poderia ter acesso à mulheres fora do âmbito conjugal, assim como poderiam ter direito à possuir uma mulher em situação de prostituição ou de angariar mais esposas, por conta do empobrecimento feminino que, mais uma vez, era consequência da própria sabotagem patriarcal, já que mulheres não podiam ser donas legítmas de bens. Entretanto, como sabemos, os sistemas sociais evoluem e se adaptam para que a sua sobrevivência seja garantida. E, o mesmo ocorreu às noções de relacionamentos dentro da ótica patriarcal.

Como vivemos no passado recente um período de transição, no qual mulheres em diversos contextos reivindicaram seus direitos e realizaram ativismo ferrenho, a sociedade teve de se adaptar a fim de comportar tais mulheres e podar qualquer teor de fato revolucionário. Se passamos a viver em um contexto no qual mulheres estavam reivindicando acesso aos direitos sexuais e reprodutivos plenos, igualdade salarial, divisão equitativa do trabalho doméstico e, pela primeira vez, passaram a ter agência para reivindicar dos seus parceiros a mesma fidelidade que lhes é reivindicada, sendo elas penalizadas em inúmeras sociedades caso cometam adultério, não faz sentido que justamente nesse período da história homens comecem a reivindicar uma maior “liquidez” nas relações e a abordar a “ausência” de amarras como um modelo agradável e revolucionário?

Afinal, quando abordamos tal questão analisando a realidade material das mulheres em uma sociedade patriarcal, questiono: qual dos dois sexos possui a real possibilidade de ter múltiplas relações prazerosas e seguras? Manter a comodidade de possuir uma pessoa que irá passar, limpar, organizar e cuidar dos seus herdeiros? E, melhor: sem ser julgado, mantendo o seu capital social de “progressista”?

Muito se utiliza o discurso psicológico ou emocional a fim de suscitar os aspectos negativos e insustentáveis da monogamia, mas muito se esquece que em uma sociedade na qual homens agem como predadores e socializam mulheres para que sejam suas presas, encontrar relações afetivas e sexuais saudáveis e seguras se torna uma tarefa quase impossível para mulheres heterossexuias e bissexuais. 

E isso, porque sequer abordamos o fato de que mulheres engravidam em uma sociedade na qual o aborto não é legalizado e na qual os homens possuem total agência para abandonar suas parceiras grávidas. Em uma sociedade na qual pesquisas apontam o número irrisório de mulheres que têm orgasmos em relações sexuais com homens, para quem serve o discurso do “prazer” na relação “plural”? Em uma sociedade na qual mulheres vivem a constante ameaça do terrorismo sexual, para quem serve o discurso de “conhecer novas pessoas e se conectar sem tantas amarras”? Quem realmente “têm diversão” e lucra com o acréscimo de benefícios?

Muitos mantêm-se na superfície, se digladiando em torno do debate sobre qual modelo relacional é o melhor ou o mais eficiente e se esquecem da questão central que está na raiz do problema: em uma sociedade patriarcal, nenhum modelo relacional se tornará “agradável” ou “progressista”, caso a sua finalidade não seja trazer mais comodismo e benefícios à classe masculina.

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Tags:, , , Last modified: 3 de maio de 2022