A feminilidade no interior da sociedade patriarcal, é construída a partir do antagonismo com a masculinidade. Afinal, para que o forte, o dominante e o protetor existam, se faz necessário que haja o fraco, o indefeso e o dominado. Por conta disso, as dinâmicas das relações entre mulheres e homens se baseiam consciente e inconscientemente na ideia de que mulheres estão e são vulneráveis enquanto homens estão e são dominantes. Tais percepções são facilmente encontradas na cultura, na indústria do entretenimento, nas religiões e nos demais aspectos sociais. Para que a mulher seja alocada como subalterna e se “acomode” no posto que lhe é reservado, se faz necessário que sejamos todos recordados, como sociedade, do seu papel subalterno.
Deste modo, se percebe igualmente que o estado de vulnerabilidade no qual mulheres são alocadas, não as faz apenas vítimas perfeitas, mas também, agressoras improváveis. Afinal, se mulheres (mas em especial, brancas), se constituem a partir de tudo o que é frágil, indefeso, ignorante e facilmente manipulável, como poderiam ter agência suficiente para realizar atos hostis e desagradáveis para com outras pessoas? Não se pode jamais esquecer que no imaginário ocidental, as figuras da Mãe e da Esposa são sobrepujantes. Como exemplo, Maria, a representação católica da mãe de Jesus, é a figura de uma feminilidade intocada e abnegada que se reproduz no discurso que é destinado às mulheres que se tornam mães. A partir dessas percepções, se torna cabal acreditar que a figura feminina não possui agência para ações negativas, sendo e estando cotidianamente no espaço da passividade.
A desumanização das mulheres não as afeta somente enquanto classe sexual, mas também a toda a sociedade que passa a crer em um discurso de bondade inata a partir da feminilidade que nos faz cerrar os olhos para crimes, agressões e hostilidades cometidas por mulheres. Afinal, se desejamos recobrar a humanidade integral da classe feminina, se faz necessário recordar que como seres humanos estamos passíveis dos melhores e piores atos. Há muito se instaura uma insegurança nos movimentos sociais, quando fechamos os olhos para violências que são cometidas por outras mulheres, quando nos blindamos com o escudo da “bondade feminina”, que se trata de uma invenção patriarcal, e passamos a conceber que não podemos reproduzir violências físicas ou simbólicas contra outras mulheres ou demais pessoas.
Ademais, se faz importante perceber o quão essa mitologia beneficia, especialmente, mulheres brancas no interior dos movimentos sociais e da sociedade em geral. Afinal, em decorrência da demonização e desumanização dupla sofrida por mulheres negras, se torna mais usual percebê-las enquanto “culpadas” ou “violentas”, ainda que sequer tenham realizado atos reprováveis. Como feministas, é nosso dever manter a lucidez e questionar cotidianamente os rumos que tomamos enquanto movimento social. Pois acreditar no mito da bondade inata, também significa roubar de nós e das demais mulheres a humanidade.