No interior das mitologias coloniais no imaginário brasileiro, reside o “mito da mãe preta”. Mito este erigido a partir do sequestro de mulheres africanas e a sua posterior exploração laboral, sexual e doméstica nas colônias europeias. Afinal, para além de terem seus filhos arrancados de si, mulheres negras serviram como o útero da escravização, sendo forçadas a gerar novos indivíduos que viriam a ser escravizados e, quando consideradas amansadas, a cuidar e nutrir os filhos dos colonizadores.
No caso específico da mãe preta, constata-se a construção de um “outro” racial mitificado; ou seja, as marcas sociais e raciais marginalizadoras da mãe preta são atenuadas para que essa figura possa exemplificar a narrativa utópica da harmonia inter-racial do velho sistema agrário-patriarcal brasileiro.
— Sonia Roncador, doutora em Literatura Comparada pela New York University
Nesta perspectiva, mulheres negras não eram compreendidas como inteiramente humanas, e tampouco suas demandas pessoais possuíam alguma relevância. Esta figura, passando por um processo de pacificação e dessexualização, tornava-se a imagem da mãe servil, passiva, sofredora e ignorante. Não obstante, o mito encontra ecos na atualidade através dos altos índices de abandono paternal nas comunidades racializadas e das estatísticas de mulheres negras no trabalho doméstico — prática servil que possui profunda conexão com o período escravocrata.
Contudo, essa mitologia possui vertentes nos mais diversificados segmentos sociais, dentre eles, nos movimentos negros e nos espaços de ativismo misto. Assim, somos socialmente direcionados a projetar a figura maternal na classe feminina negra, tal lhe fosse uma incumbência acolher, educar e nutrir outras e outros em detrimento de suas próprias pautas, segurança e ascensão política. Não obstante, determinados movimentos sociais utilizam-se desta mitologia a fim de atribuir um papel maternal às mulheres negras em relação aos homens negros, como se lhes fosse necessário educá-los e pôr seus direitos e segurança em espaços inferiores.
Segundo alguns, inspirando-se em preceitos de determinadas comunidades africanas. Segundo outros, por conta do contexto de violência no qual homens negros foram inseridos, lhes é um direito subjetivo ter para si uma “mãe preta” que o apoiei e nutra durante a sua trajetória de aprendizado social. Contudo, tal mitologia para além de misógina, ressalta os papéis que são atribuídos às mulheres negras nos espaços sociais. Afinal, pouco se fala acerca do cruzamento de opressões que torna mulheres negras mais psicológica e fisicamente vulneráveis. Pouco se fala do abandono parental ou do fato de serem o maior percentual de “chefes de família” monoparentais. Pouco se fala de nosso bem-estar físico, psicológico e sexual. Mulheres negras, cuidem-se primeiro. Uma análise racial que não abrange as especificidades trazidas pelo sexo em uma sociedade patriarcal, não nos contempla.