Nos últimos dias, ao assistir um trecho da entrevista cedida pela atriz trans Gabriela Medeiros no programa “Conversa com o Bial”, reflexões acerca da experiência afetiva de mulheres na sociedade erigiram à luz da obra “Comunhão”, volume três da trilogia “Tudo Sobre o Amor de bell hooks. Ao decorrer do discurso no texto escrito por Gabriela e lido por Pedro Bial, a atriz dá a entender que o amor dos homens não lhe é ofertado em razão de sua condição como trans. Entretanto, ao observar seu discurso à luz da teoria e prática feminista, surge o questionamento: mulheres, independente de como sejam, são genuinamente amadas por homens em um Patriarcado?
Considero tal questionamento um pilar central a fim de que possamos construir uma discussão para além das mitologias patriarcais que fundamentam o amor romântico. Desse modo, gostaria inicialmente de lhes trazer uma experiência pessoal.
Como mulher negra, cresci a escutar parentes e amigas queixosas, afirmando que em razão de nossa etnia, jamais receberíamos amor masculino. Havia a noção de que homens, fossem negros ou brancos, sempre destinariam o seu afeto às mulheres brancas. Em especial, àquelas que condizem com o imaginário de beleza ocidental e influência social. Além do racismo sofrido por nós da parte de mulheres brancas, percebia que a ideação desse homem imaginário, que supostamente não estaria nos oferecendo afeto para oferecê-lo às mulheres brancas, sempre era motivo para animosidade, amargura e sentimento de inferioridade perante mulheres de compleição mais clara.
Até a atualidade tal noção permanece, sendo o discurso do “homem negro que prefere amar mulheres brancas” largamente utilizado nas comunidades negras e em discussões em torno da solidão feminina negra. Crescemos a crer que éramos negligenciadas, abusadas e estupradas, enquanto mulheres brancas recebiam todo o afeto, amor e consideração que os homens não ofertam às negras. E quais seriam as provas desse suposto afeto? Serem assumidas publicamente? Serem apresentadas como namoradas? Serem escolhidas para se tornarem esposas e mães? Receberem flores? A última é uma queixa clássica.
Todas as percepções em torno desse suposto afeto, se dão na concessão de traquejos pertinentes à heterossexualidade enquanto identidade construída no Patriarcado, mas não com a constatação do amor masculino enquanto ação benéfica à vida das mulheres. Somos condicionadas a crer que o amor masculino se traduz no quão um homem nos oferta a passabilidade para o mundo social, no ímpeto de sua escolha (como traz bell hooks e Valeska Zanello) e no seu interesse em permanecer na lógica do traquejo heterossexual.
Homens conduzem mulheres nesse jogo de sedução, no qual raça e classe são indissociáveis, no intuito de alocar mulheres em castas e fomentar a rivalidade entre si. Produzindo, desta forma, um exército de desesperadas que sempre farão de tudo para conseguir o precioso e escasso “afeto” masculino. Isso te recorda alguma coisa?
Por conta disso, é essencial ao Patriarcado que mulheres negras pensem que mulheres brancas são amadas e adoradas, é essencial que pensemos que existe essa mulher, essa outra mulher que recebe dos homens tudo aquilo que sempre sonhamos. Porque assim, seguimos na lógica de direcionar nossa frustração às outras mulheres, enquanto homens seguem apenas se valendo da socialização feminina para conseguir empregadas domésticas, mães, psicólogas e governantas gratuitamente.
Percebam que todas essas estratégias de racionamento de afeto, fomento de rivalidade entre negras e brancas através da lógica racista nas relações afetivas, “comer negras, gordas, trans na noite” e “somente se casar com brancas e magras” é somente um joguete para ocultar o real propósito dessa modulação social.
Homens precisam convencer mulheres de que se relacionar com eles é positivo, quando na verdade não é. Eles precisam inflacionar o valor desse suposto “afeto”, diminuindo a oferta e aumentando a demanda, porque sabem que, caso mulheres pensem racionalmente, perceberão que os maiores beneficiados estão na casta masculina.
Não são um ou dois, mais sim 17 anos a mais de expectativa de vida para um homem que vive com uma mulher.
Extraído da matéria “Estudo diz que casados podem viver 17 anos mais que solteiros” no site Terra, 2024.
17 anos às custas de exploração do trabalho doméstico, de sobrecarga emocional, de sexo às vezes indesejado (muitas mulheres sofrem estupro marital). Além disso, como nos alerta Graham, muitos homens abandonam o cortejo heterossexual após o casamento, deixando somente o encargo sobre a mulher.
A simples presença de uma mulher amando na vida de um homem, lhe oferece uma gama de privilégios e benefícios os quais sequer imaginamos. Amor e cuidado fortalecem, amparam, dão perspectiva de vida e aconchego. Quantos homens depressivos ou com outras questões psicológicas recebem cuidados de parceiras e família?
Há mulheres que até pagam as sessões com psicólogo(a) para namorados e maridos! Enquanto isso, qual é o amor que homens oferecem?
Quantos homens cuidam de suas parceiras, pensam ativamente nelas, são proativos em fazer a divisão equitativa do trabalho doméstico, respeitam um não sem fazer birra? Não estão interessados em explorar a socialização feminina da parceira?
Quantos homens estão dispostos a abrir mão da dinâmica “mamãe e filhinho” e adentrar a dinâmica “dois seres humanos adultos que se respeitam e amam mutuamente”?
Mulheres negras e que pertencem às demais minorias sempre serão afetadas pelo cruzamento de opressões que as faz sofrer de males agregados, como o próprio conceito de afromisoginia sobre o qual tenho abordado desde 2018 descreve. Contudo, precisamos abrir nossos olhos para as artimanhas da socialização. Minhas queridas mulheres negras, mulheres PcD, mulheres gordas, pessoas trans, amor não é receber buquê de rosas e ser levada(o) para jantar todo final de semana.
Amor é quando se opta por não explorar o seu condicionamento, quando se opta por deixar de ser homem e se tornar uma pessoa, quando se vulnerabiliza e se permite ser penetrado pela sua presença, quando desmantela até a própria noção de masculinidade para ser um namorado melhor, um marido melhor, um pai melhor. Amor é abandonar os amigos estupradores, abusadores, deixar para trás o clube dos garotos.
Amor é um nível de entrega em que ambos caminham em direção a si mesmos na medida em que se encontram no meio e se escolhem.
E se você pensa que esse amor é utópico, não se esqueça que qualquer homem que usufrua do seu cuidado ganhará de 17 anos para cima em expectativa de vida.
Os homens em geral não amam as mulheres e não sabem como amá-las, não porque são coitados, mas sim porque não desejam genuinamente fazê-lo. Porque é mais fácil se relacionar com uma mulher que deseja pouco do que com uma que deseja muito. Porque não estão realmente interessados no trabalho de amar.
Sei que esse é um tema doloroso, mas necessário.
Concordo com bell hooks nesse aspecto, o amor tem que voltar para o centro da discussão. Nunca se esqueçam, o pessoal é político.
Só uma nota: nós brasileiros somos considerados "não-ocidentais"(non-western). Descobri isso recentemente num fórum de geopolítica enquanto procurava dados sobre Império…