Written by: Feminismo Negro

“Eu não quero ser a tua amiga”: A Precariedade do Afeto na Vida de Mulheres Pretas

A violência e estereótipos que minam-nos a afetividade.

“Tenho a impressão de que sou um objeto fora do uso, digno de estar num quarto de despejo. ”


– Carolina Maria de Jesus

Amor. Respeito. Afeto. Companheirismo.

Tais termos soam-lhe familiar? O que tu dirias, caso partilhasse que, apesar da extrema familiaridade, inúmeras mulheres jamais vivenciaram os significados tangíveis de tais sentimentos?

Infelizmente, não trata-se de eufemismo. Contudo, uma afirmação factual e aferida por intermédio de dados estatísticos:

“No último Censo, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, dados sobre a mulher preta brasileira chamaram a atenção. O levantamento apontava que, à época, mais da metade delas — 52,52% — não vivia em união, independentemente do estado civil. ”

– Fonte: Revista Fórum

“As mulheres pretas chefes de famílias com até um salário mínimo de rendimento são de 60%, revelando uma escolaridade mais baixa. Já as famílias chefiadas por mulheres que recebem três salários ou mais, a presença das mulheres pretas reduz para 29%. ”

FonteMulher Negra, Dados Estatísticos

“Dados da Central de Atendimento à Mulher relativos ao ano de 2013 apontam que 59,4% dos registros de violência doméstica no serviço referem-se a mulheres pretas. ”

– Fonte: Agência Patrícia Galvão (Violência e Racismo)

O Dossiê Mulher 2015, do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, aponta que 56,8% das vítimas dos estupros registrados no Estado em 2014, eram pretas. E 62,2% dos homicídios de mulheres, vitimaram pretas (19,3%) e pardas (42,9%).

– Fonte: Agência Patrícia Galvão (Violência e Racismo)

Há similaridades entre os indivíduos catalogados em tais estatísticas, afora as condições inferiores às quais estão submetidas?

Tratam-se, maioritariamente, de mulheres pretas.

O princípio da solidão

A datar dos primórdios da sociedade brasileira, mulheres pretas têm constituído o elo subalterno nos entrelaçamentos sociais. Sequestradas de África e impelidas à escravização; retiraram-lhes abruptamente os direitos, família, amigos e expressões culturais, religiosas e sociais. Mulheres escravizadas usualmente labutavam em lavouras e plantações, tal os homens. Entretanto, serviam aos caucasianos senhores nas pérfidas Casas Grandes. Havia seccionamento de incumbências: algumas submetiam-se aos cuidados domésticos, outras, aos cuidados infantis e todas, sexualmente vinculadas, sujeitavam-se aos caprichos dos senhores e, em momentos, de demais escravizados. Em tal ambiente caótico, torturante e repressivo, não vigoravam o amor e o estabelecimento de relações íntimas ou fraternais. O menor dos deslizes, poder-lhes-ia suscitar castigos brutais.

Afora afazeres domésticos e serviços tais “ama-de-leite”, mulheres negras tornaram-se incubadoras humanas submetidas à procriação. Comumente estupradas, pariam compulsivamente os futuros escravizados. Quando oportuno, provocavam abortos no intuito de livrar suas futuras crianças de uma existência completamente miserável. As escravizadas classificadas tal “mulatas” eram forçadas a tornarem-se concubinas de seus senhores, parindo filhos mestiços os quais seriam renegados e animalizados.

Um dos pilares a sustentarem a violência infligida à mulheres negras em tal período, tratava-se do ódio proferido pelas esposas dos senhores. Portanto, puniam intensamente escravizadas por questões supérfluas, embasadas na frustração suscitada ao descobrirem as traições conjugais e estupros consecutivos aos quais seus maridos submetiam tais mulheres. Não obstante, tornar-se acompanhante das senhoras, não tornava escravizadas imunes à tortura. Mulheres pretas foram submetidas à uma existência de integral servidão física e psicológica à supremacia caucasiana, durante 358 anos da História Brasileira. Certamente, haveriam sequelas.

A atualidade

Os desdobramentos de tal opressão, perduram na atualidade. Mulheres negras permanecem a ser o elo mais fraco da corrente social. Deixamos as senzalas e migramos às favelas. “A escravizada” tornara-se “a pobre”, a submeter-se à hostilidade, crueldade e marginalidade. Estatísticas comprovam o fato de que em Brasil, a maior parcela de mulheres a sustentarem seus filhos a deter somente um salário mínimo ou menos, constitui-se por mulheres pretas. Somos aquelas as quais trabalham precocemente e desenvolvem-se sem possuir a presença paterna em suas residências. Tal realidade é-nos palpável. Qual de nós não possui uma avó, tia, prima ou sobrinha de pele escura a qual sustenta ou sustentara filhos sem a presença masculina em seus lares? Foram abandonadas por seus maridos, à própria sorte? Vivemos a precariedade do afeto, durante a infância e em laços familiares.

A opressão sofrida por mulheres negras mantém-se estritamente maior. Pois, além do machismo, a hierarquia racial exerce um jugo essencial à hegemonia. Não afeta somente a ascensão social, ademais, a afetividade, constantemente. A rememorar o período colonial, corpos femininos e negros permanecem a ser sinônimo de promiscuidade, animalidade e ausência de sentimentos. Cobiçam as nádegas voluptuosas, lábios carnudos e silhuetas. Evocam a carne e obscurecem-nos a humanidade.

Socialmente, aprende-se desde a tenra infância a venerar a beleza eurocêntrica e abominar àquela advinda de origem africana. Os traços semi-angulares, a pele branca, cabelos lisos e olhos extremamente claros, tornam-se dignos de exaltação. Contudo, fenótipos africanos alocam-se tal chacota, vergonha e humilhação.

Tais contornos são considerados indesejáveis, ao menos que presentes na fisionomia de uma mulher branca. Apesar do desejo sexual exacerbado por mulheres negras, há um ódio descomunal por suas origens. Tais convenções sociais não manifestam-se somente em caucasianos, contudo, em negros os quais acabam por preferir relacionar-se com mulheres brancas, a fim de obter ascensão social e “embranquecer” suas famílias. Usualmente, inúmeros homens jamais estabelecem relacionamentos fixos e socialmente expressos com mulheres negras.

Para o artigo, entrevistara determinadas mulheres. Recebera diversificadas devolutivas, no entanto, surpreendera-me perceber que frequentemente narravam ocorrências em comum:

01 — Tu já te sentiste rejeitada por ser uma mulher preta?

02 — Já sentiste que homens a buscavam para sexo, mas não para relacionamentos duradouros?

03 — Já te relacionaste com homens negros ou brancos?

04 — Quais diferenças notaste entre ambos?

05 — Já te sentiste pressionada em relação a tua sexualidade? ”

Estas são algumas devolutivas partilhadas por tais mulheres:

sim, a todo momento. Sempre fui a pessoa que servia pra ser amiga, enquanto as meninas brancas serviam pra ser namorada, mesmo não sendo parceiras.

“Sim, eu era objetificada inclusive durante um relacionamento. Era a “puta”, enquanto ele se encantava pelo “charme e delicadeza” de outras mulheres brancas.”

“demorei a entrar em um relacionamento sério”

“era hipersexualizada por ambos, preterida por ambos, escondida por ambos, porém senti dos caras pretos a negação em se ver como pretos, onde automaticamente não assumiam sua cor, se embranquecendo a todo momento (nitidamente fruto do auto-ódio.)”

“homem branco é racista e cego pelo privilégio, homem preto é vítima do racismo e tenta se embranquecer o máximo por conta disso. Inclusive já me relacionei com homem preto retinto que enxergava em mim uma oportunidade de clarear a família, isso claramente porque não conseguia uma branca então uma preta de pele clara é o que tinha.”

“Eu não quero ser a tua amiga”: O estereótipo da amiga negra

“Sempre fui a pessoa que servia pra ser amiga, enquanto as meninas brancas serviam pra ser namorada.”

– S. G. (Entrevistada)

Tal depoimento remete-nos à um dos estereótipos mais nocivos à afetividade de mulheres pretas. Em inúmeras produções audiovisuais as quais detém algum protagonismo feminino, tal arquétipo usualmente faz-se presente: “a amiga negra”. Geralmente, trata-se de uma personagem a qual mantém-se à sombra da protagonista branca. Ela possui uma personalidade subdesenvolvida, praticamente nenhuma autonomia, comportamento caricato, e corriqueiramente o arco da produção finda-se a mantê-la em solidão, enquanto a protagonista branca vivencia uma tórrida história de amor.

Ritinha e sua amiga Marilda em “A Força do Querer”.
Charlotte, (no centro), acompanhada por suas amigas Tai ( à esquerda) e Dionne ( à direita) para o filme: “Clueless”.

Enorme contingente de mulheres negras vivenciam tal situação em sua adolescência. Não importa o quão bela, interessante, afetuosa ou inteligente sejas; jamais serás páreo àquela menina loira e caucasiana pela qual todos os rapazes pretos, brancos e não-brancos derretem os corações. Tais ocorrências estigmatizam-nos desde as paixões iniciais, desenvolvendo um estigma o qual acompanhar-nos-á até o findar da vida. Portanto, um período de transformações essencial ao ser humano, torna-se em uma ferida aberta e visceral a qual, talvez, jamais feche-se. Idealizamos um amor socialmente estereotipado, o qual negam-nos constantemente. Enquanto as amigas brancas ou de pele clara namoram e são tratadas em modos diferenciados, somos preteridas e silenciadas.

Um exemplo a citar-se, trata-se da atriz global Taís Araújo, considerada belíssima e extremamente aclamada por sua fisionomia. Contudo, através de relatos ao site Gshow a respeito de sua relação com os demais durante a adolescência, percebe-se não tratar-se do quão bonitas somos ou podemos ser, mas sim, da cor que possuímos:

“Estudei a vida inteira em um lugar no qual a maioria das pessoas era branca. Só que eu era aquela que não namorava ninguém no colégio, nem no condomínio. Para dar meu primeiro beijo, tive que ir à Bahia. Eu até trabalhava como modelo, era considerada bonita, mas ninguém queria me namorar. Ou não tinha coragem. Sofria, né? ‘Eu gostava dos garotos, eles que não gostavam de mim’” 

— Taís Araújo.

O preterimento intensifica-se quando vivemos em ambientes majoritariamente brancos. A todo momento, atitudes e posicionamentos teimam em recordar-nos de que estamos em um patamar ao qual “não pertencemos” e jamais permitir-nos-ão pertencer.

As moças de pele clara, “são para casar”, constituir família e vivenciar relacionamentos. Nós, “somos para transar”, viver dissolutamente em prol do prazer masculino, para que posteriormente sejamos descartadas e criemos os filhos de homens os quais simplesmente abandonaram-nos. Constantemente, somos relegadas à “amizade”. Quando mantemos relações sociais com rapazes, concebem-nos tal boas amigas. Porém, jamais cogitam a possibilidade de estabelecer relacionamentos românticos. Outros, buscam-nos, desesperadamente, para o sexo casual. Toda menina preta escutara, em algum momento: “vocês são as mais quentes”, “vocês são mais gostosas”, “essa pele da cor do pecado deixa-me louco”. Somos impossibilitadas de experimentar uma vida sexual e afetiva saudável. Maioritariamente, ou incorporamos a repressão sexual, ou acabamos no leito de algum imbecil.

Tradução: “Meu nome certamente não é maldita vadia preta”. Da série: “she’s gotta have it”.

Considerações finais

Sexualizam-nos de maneira cruel, principalmente, meninas as quais estão em imensa vulnerabilidade. A datar da infância, inúmeras são doutrinadas a trajar-se de shorts minúsculos e a agir em modos provocantes e permissivos. Doutrinam-nos para que apreciemos tal tratamento, reproduzi-lo à demais meninas e o aceitarmos sem questionamentos. Homens sempre mantiveram a concepção de que a etnia negra atrelada ao corpo feminino trata-se de um passe-livre ao abuso, estupro e pedofilia. Jamais para o amor. Independente de como seja-se. Ensinam-nos que tal prisão constitui liberdade, quando verdadeiramente, apenas estamos a “apreciar” a própria opressão.

Nosso sofrimento, tal a solidão, trata-se de um mecanismo estrutural. Não trata-se de uma reles “preferência”, quando excluis mulheres pretas de teu hall de relacionamentos duradouros, amizades e afetos sociais. Mulheres pretas são inteligentes, complexas, belas, possuem sentimentos, são companheiras, amigas e boas pessoas, tal qualquer outra mulher pode ser. Não somos inferiores, não tratamo-nos de pedaços de carne em exposição e não estamos existimos para a satisfazer alguém. Carecemos de extirpar séculos de estereótipos nocivos os quais minam a afetividade de mulheres pretas. Pois, merecemos vivenciar o amor, em toda a sua plenitude.


Versão em inglês

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Tags:, , , Last modified: 1 de agosto de 2021