Written by: Feminismo Raiz

[TRADUÇÃO] Discurso para a FiLiA Conference 2022: A mulher negra na sociedade brasileira e o fundamentalismo religioso

Tradução do discurso escrito para FiLiA Conference 2022

Primeiramente, eu gostaria de desejar um bom dia a todas as pessoas presentes e agradecê-las por me convidarem e permitirem que eu lhes conte uma história. Como escritora, a minha vida tem sido contar histórias, e elas, as histórias tem sido uma das estratégias mais poderosas ao longo da história da humanidade. E por isso, ao longo dos séculos, mulheres e especialmente mulheres negras ou de outras etnias que foram marginalizadas, perderam o direito à palavra. Porque histórias formam a cultura e histórias formam o mundo.

A minha história começa com um país colonizado, no qual mulheres indígenas foram torturadas, estupradas e exterminadas em massa, juntamente com seus filhos e os homens de sua etnia. A violência daqueles que as dominaram, possuía uma característica sexual, não apenas pela crueldade já estabelecida ou do mero ódio ao sexo feminino, mas sim porque a violência sexual é uma das maiores ferramentas de controle e contenção utilizadas contra as mulheres como classe, porque ela nos quebra, fragmenta de dentro para fora, e também destrói a noção masculina de “mulher digna”, nos empurrando para a margem. E assim ocorreu no início, mas ocorre até os dias de hoje nesse país colonizado. No qual mulheres indígenas e suas crianças ainda são estupradas pelos novos colonos – os garimpeiros – na região Norte do país. Na comunidade Yanomami de Roraima, uma menina indígena de 12 anos foi violada até a morte, enquanto sua tia, sem que nada pudesse fazer, teve de ver quando os novos colonos lançaram a outra criança que estava com elas no rio.

O domínio das terras indígenas ocorre nesse país colonizado, como estratégia de exploração e  extermínio que tem se fortalecido nesse contexto político caótico, ultra-direitista e fundamentalista religioso. Explorar a terra e explorar as mulheres nesse país, não é muito diferente. Porque delas eles conseguem tudo, o sustento, o trabalho, os novos cidadãos e a continuidade de um poder colonial que somente passou da mão dos antigos colonos para os novos, que estão atualmente nas bancadas do agronegócio, da religião e do discurso armamentista.

E nesse país, outros povos também foram explorados desde a sua gênese. Pois essa nação foi formada a partir do tráfico transatlântico de pessoas africanas e da exploração de mulheres negras não apenas como mão de obra escravizada, mas também como objetos sexuais. Na época da escravidão, a violência sexual era utilizada contra mulheres negras a fim de quebrar os seus espíritos e torná-las submissas, assustadas e sem nenhuma esperança de que poderiam viver de outra forma. E essa violência continua até a atualidade, pois esse país, o meu país, tem sete estupros registrados por hora, e as vítimas mais recorrentes são mulheres negras. Meninas negras, pois a idade padrão das vítimas se fixa em 14 anos. Eles ainda querem quebrar os nossos espíritos para a manter a sua dominação sobre nós e nos deixar sem esperança.

Nesse país, mulheres negras também são a maioria da população em situação de vulnerabilidade, tendo acesso a empregos precários, sofrendo com a insegurança alimentar, acesso à saúde precário, altos índices de violência sexual, feminicídio e violência doméstica. Além do abandono dos seus filhos, pois nesse país, a maior parte das famílias monoparentais é liderada por mulheres negras. Nos anos de 2020 e 2021, durante os picos da pandemia de COVID-19, mulheres negras foram a classe mais afetada pelos desdobramentos econômicos e sociais da pandemia no país. Mas também estão entre os grupos mais psicologicamente afetados, pois tiveram uma maior incidência de transtornos mentais em decorrência do cenário pandêmico. Em um contexto no qual mulheres negras têm as suas capacidades sexuais e laborais duplamente exploradas e permanecem maioritariamente sozinhas, a pandemia de COVID-19 as deixou ainda mais sobrecarregadas e as tornou vítimas ainda mais recorrentes de violência doméstica.

Além das dificuldades já citadas, outros pilares fundamentais foram atingidos nas vidas de mulheres e meninas no meu país. Segundo dados da pesquisa realizada pela ONG Plan International, 95% das meninas foram negativamente afetadas pela crise sanitária, tendo sido a educação o pilar mais enfraquecido, em razão das dificuldades de acesso à tecnologia, pobreza, ausência de espaços apropriados para os estudos, aquisição de dados móveis e necessidade de complementação da renda familiar. Manter meninas fora da escola, é também uma estratégia de dominação sobre a classe. Afinal, é uma maneira de nos manter longe do discurso e da palavra. 

E no meu país, onde temos vozes memoráveis que se levantam pelos direitos das mulheres, temos resistido apesar do medo. Sim, medo. Pois os direitos das mulheres desse país, o Brasil, têm sido atacados por uma onda conservadora que deseja promover retrocessos inimagináveis nas políticas públicas destinadas à classe feminina. Precisamos saber, sobretudo, que o paradoxo da dominação é econômico, social e psicológico. Afinal, a maior parte das pessoas dentro das Igrejas evangélicas, segmento religioso que cresce e se fortalece nos meios políticos, são mulheres negras. Porém, quem de fato domina esses espaços e dita não apenas o discurso, como também a organização social, são homens e em sua maioria brancos.

Os avanços desses fundamentalistas religiosos desejam transformar o Brasil em uma versão tropical de The Handmaid ‘s Tale. Afinal, o aborto no meu país é legalizado apenas em casos de estupro e anencefalia do feto. Com exceção desses casos, toda e qualquer mulher que aborte no Brasil, assim como quem realizar o aborto, pode ser preso. Graças a essa legislação, o aborto insegura é uma das maiores causas de morte materna no Brasil, sendo as mulheres negras as mais afetadas. Entretanto, sinto em lhes informar que essa história ainda ficará pior, antes de melhorar. Porque com o avanço da pauta ultra-conservadora, homens estão tentando minar o direito ao aborto como é previsto na lei, para que a prática se torne ilegal em todas às instância. No Brasil, temos casos de meninas que são estupradas e têm o aborto negado, ainda que a lei lhes permita. Um dos casos mais emblemáticos ocorreu neste ano, onde uma menina de 10 anos engravidou após um estupro e foi retirada de sua mãe e mantida sob custódia do Estado com a permissão de uma juíza a fim de que a criança fosse impedida de realizar o aborto.

O caso ganhou repercussão após uma matéria publicada pelo jornal The Intercept Brasil e somente após isso, a garota conseguiu abortar. A manobra ilegal da juíza, fez com que a garota tivesse de abortar aos sete meses, lhe causando extremo sofrimento psicológico. E ainda assim, recentemente foi aberta uma investigação a fim de tentar culpar a criança e aqueles que a ajudaram… por terem feito um aborto legal.

E além do ultraconservadorismo da direita religiosa brasileira, também somos afetadas por aqueles que se dizem nossos aliados, mas querem que neguemos que a opressão das mulheres no Brasil e no mundo está fundamentada na materialidade do nosso sexo, das nossas etnias e das nossas classes econômicas. Mulheres que lutam pelos direitos das mulheres no Brasil, são perseguidas, humilhadas, perdem empregos e popularidade, assim como também recebem ameaças de morte e de ataques com ácido corrosivo e também… ameaças de estupro. Afinal, como disse no início da história, essa é uma das ferramentas mais utilizadas para quebrar os nossos espíritos e nos manter paralisadas. Nos manter silenciosas, sem poder contar a nossa própria história.

Contudo, apesar das ameaças e das violências, mulheres no Brasil seguem se auto-organizando e lutando para que nossos direitos não sejam retirados e novos direitos possam ser garantidos. Como disse a vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro em 2018: “Nós não seremos interrompidas”. A nossa história seguirá sendo contada. E eu peço nesta manhã, que os olhos do mundo estejam voltados para o Brasil, para as mulheres negras e indígenas no Brasil e para a luta que temos construído. 

Apesar das ameaças dos conservadores, apesar do ódio daqueles que negam os direitos das mulheres baseados no sexo, apesar das perseguições e do silenciamento, apesar da pobreza extrema e da manutenção de mulheres negras nos espaços mais baixos da sociedade brasileira, apesar do início tão triste dessa história, eu apenas gostaria de dizer: “Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia / Ainda pago pra ver / O jardim florescer / Qual você não queria / Você vai se amargar / Vendo o dia raiar / Sem lhe pedir licença / E eu vou morrer de rir / Que esse dia há de vir / Antes do que você pensa”.

Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.

E nós, as mulheres do Brasil, lutaremos até o fim. Até que o sol se ponha.

Mulheres do mundo, juntem-se a nós.

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Tags:, Last modified: 3 de novembro de 2022