Nos últimos dias, o então deputado Marco Feliciano (PL – SP), realizou um comentário vexatório a respeito da Ministra da Cultura Margareth Menezes durante uma sessão da Comissão de Cultura da Câmara. Ao decorrer de seu discurso, o deputado afirmou: “A ministra ou o ministro? Eu não sei quem é. É ministra, então. Eu quero saber o que ela é. Eu sei que é uma mulher, mas eu não sei se pode ser chamada de mulher”. A fala do parlamentar gerou repercussões, sendo rebatida pela deputada Lídice da Mata (PSB – BA), que saiu em defesa da Ministra.
A fala de Marco Feliciano, por mais que soe superficialmente preconceituosa à primeira vista, carrega consigo uma gama complexa de expectativas sociais e estereótipos que são alocados sobre as mulheres negras. O primeiro deles é duramente combatido nas reivindicações de grandes ativistas sociais negras, como a norte-americana Sojourner Truth, responsável pelo célebre discurso: “E não sou eu uma mulher?”. Afinal, ao questionar-se se a então Ministra Margareth Menezes, que jamais veio à público assumir-se pessoa trans, é uma mulher, Marco Feliciano toca em uma das feridas sociais mais latentes na subjetividade feminina negra: numa sociedade colonial, a mulher negra ocupa o espaço de não-mulher (MORAIS, Yasmin em “O que é Afromisoginia).
Como já discutido em outros artigos e publicações, a feminilidade estética no contexto patriarcal-ocidental, é fundamentada em princípios eurocêntricos. Deste modo, a “verdadeira mulher” possui não apenas um comportamento que se confunde com os estereótipos de docilidade e amabilidade das mulheres brancas, como também traços finos, pele clara e aparência caucasiana. A mulher que foge a esse padrão, principalmente nas sociedades coloniais, é alocada em cenários que vão desde a “mulata tipo exportação” até à “não-mulher”, que seria a negra que possui traços mais marcados, pele mais escura e corpo mais robusto. Quanto mais afastada do ideal feminino-branco, mais próxima da não-mulheridade uma mulher negra ou racializada em geral está. Nos importa salientar que, quando afastadas do conceito eurocêntrico e patriarcal de mulheridade, as mulheres negras não são “libertas” do peso social da identificação enquanto mulher, pelo contrário. O papel subalterno que lhes é imposto é ainda mais brutal, pois perante a sociedade as mesmas não possuem a suposta “delicadeza” e “fragilidade” que outras.
Além disso, o discurso de animalização ou masculinização de mulheres negras não reside apenas na direita, mas também em alas da esquerda. Afinal, em países como os Estados Unidos, alguns ativistas tentam comparar mulheres negras às mulheres trans, argumentando que, assim como mulheres trans, mulheres negras estariam fisicamente mais próximas da “força física masculina” e mesmo assim “passaram a ser incluídas no convívio social das verdadeiras mulheres”, quais seriam neste caso as “verdadeiras mulheres”? O que seria, neste caso, uma mulher? Retornando, de forma angustiante, à pergunta feita por Sojourner Truth nos séculos passados.
O conceito de mulheridade amparado em estereótipos e na feminilidade eurocêntrica, exclui a experiência corporal e social das mulheres negras, que tiveram e têm os seus corpos mais avantajados, escuros e com traços mais marcantes, continuamente comparados a “homens” ou a pessoas “que não são femininas” e, por vezes, até considerados um tipo “geneticamente diferente de mulher”. As nossas características físicas não são sinônimo de feminilidade e, em uma sociedade na qual a feminilidade é o manual de sobrevivência da oprimida face ao opressor, as mulheres negras estão somente para ser brutalizadas ou tentaram adequar os seus corpos, cabelos e tons compulsivamente àquilo que esta sociedade considera de fato “feminino”.