Divergindo das acepções pós-contemporâneas vulgares, o termo Sororidade não emergiu por atuação da vertente Liberal, tampouco, enquanto nomenclatura oriunda do Feminismo de Terceira Onda. Entretanto, desde a evolução exponencial do contingente de sites, perfis digitais e a atuação da Indústria Cultural em temáticas sócio-identitárias, a Sororidade tornou-se um termo-chave para suscitar a compreensão do Pensamento Feminista Pós-contemporâneo e os desafios vigentes em uma época na qual diversas organizações alegam simpatizar às causas femininas.
Tal termo foi alocado no pedestal da curiosidade, a partir do ano de 2017. Recém-suscitado em Brasil, a frase “O que é Sororidade?” tratara-se de um dos questionamentos mais realizados por brasileiros na ferramenta Google, segundo o ranking do próprio buscador digital. Tornando-se extremamente populares, as noções de “Sororidade” povoaram revistas, vídeos publicados no YouTube, programas de televisão e tornaram-se praxe no discurso de quaisquer digital influencers.
Após a abrangente adesão, o termo fora rapidamente cunhado pela vertente Liberal, que salientou as características metafísicas do suposto sentimento o qual edificaria uma aliança entre as mulheres. Pendendo à uma análise particularmente simplista, o termo que conseguira galgar o feito de projetar-se para além dos cercos da militância, sofrera constante esvaziamento de seu sentido revolucionário. Deste modo, a Sororidade tornara-se alvo de imensas críticas em produções acadêmicas feministas e perspectivas interseccionais.
“Sororidade pra quem? O que tenho visto muito no movimento feminista é a sororidade somente para com os seus — brancas praticando com brancas, por exemplo, e com as negras não rola essa ideia de cumplicidade. Muitas vezes, a ideia de sororidade é usada para silenciar, principalmente quando uma pessoa sem prioridade de fala num determinado assunto utiliza a tal sororidade num debate para silenciar outra pessoa […]”.
— Scarlett Rodrigues da Cunha, Mestranda em Políticas Públicas na Universidade Federal do ABC
Potentes inquietações proliferaram-se, tornando o termo em uma incógnita polissêmica. Afinal, seria a Sororidade unilateral? Seria um sentimento? Uma ação política? Ser-me-á objetivo crucial trazer tais questionamentos à luz.
Sororidade: Uma Aliança entre Mulheres?
Sororidade trata-se da variação lusófona do termo derivado do latim sóror = irmã. Cunhado enquanto nomenclatura política, sua significância tratar-se-ia de uma oposição ao termo fraternidade, o qual designaria a união entre seres humanos do sexo masculino. A sororidade descrever-se-ia tal uma aliança política, social e cultural entre mulheres, as quais, por compreenderem empiricamente as implicações de pertencer-se ao sexo feminino em uma sociedade patriarcal, partilhariam experiências específicas entre si. Deste modo, a sororidade emerge como um sentimento teoricamente comum a todas as mulheres, o qual, possui em seu âmago o potencial de edificar pontes entre as mais variadas classes femininas. Contudo, salienta-se o fato de que, sob uma perspectiva feminista radical, a sororidade enquanto “sentimento em comum” entre mulheres, não tratar-se-ia de algo suficientemente apto a promover a revolução a qual propõe-se.
Quando emergiu o movimento feminista de segunda onda, entre as décadas de 1970 e 1980, o termo sororidade sequer fora utilizado para designar a aliança estabelecida entre diversos nichos de mulheres norte-americanas que clamavam pelo enfraquecimento do sexismo, o fim dos estereótipos de gênero, a aquisição de direitos, o fim da desigualdade salarial e demais opressões relativas à classe feminina. Inicialmente, a proposta de solidariedade entre mulheres emergira para além das fronteiras subjetivas e tornara-se um desejo político, social e cultural.
O feminismo, em sua essência libertária, conclamava as noções de união arquetípicas entre mulheres, que rememoravam o poder da classe feminina, quando unida em prol de um objetivo em comum. Historicamente, a concepção de fêmeas que detinham poder e viviam sob a insígnia de uma comunidade matrilinear, edificara-se em inúmeras civilizações. Amazonas, Valquírias e Guerreiras de Daomé, projetam arquétipos relativos à força advinda da união feminina em diversas culturas e períodos históricos.
Porém, a sororidade propunha desafios intrépidos àquelas que não possuíam o real anseio pelo estabelecimento de uma solidariedade entre todas as classes femininas. Pois, o sexo enquanto categoria constituinte da classe, entrelaça-se às categorizações de raça e classe social, as quais produzem e sustentam níveis de opressão diferenciados entre mulheres. Deste modo, mulheres negras mantêm-se historicamente vulneráveis e politicamente inferiorizadas em relação às caucasianas. Uma suposta aliança equitativa entre mulheres, jamais poderia firmar-se, caso o racismo e classismo feminino não fossem fortemente enfrentados. Contudo, em tal época, diversos agrupamentos feministas caucasianos mantinham perspectivas inteiramente direcionada ao sexo, excluindo demandas relativas às mulheres racializadas.
Significativamente, a irmandade (sororidade) nunca poderia ter sido possível em todos os limites da raça e classe, se as mulheres individuais não estivessem dispostas a alienar seu poder de dominar e explorar grupos subordinados de mulheres. Enquanto as mulheres estão usando o poder da classe ou da raça para dominar outras mulheres, a irmandade (sororidade) feminista não poderá ser plenamente realizada.
— bell hooks, “O Feminismo é Para Todos”
Deste modo, exibe-se o potencial utópico e discriminatório no qual a sororidade fora inicialmente interpretada e aplicada por ativistas. Pois, por intermédio do racismo estrutural, tais mulheres caucasianas alocavam-se enquanto expressão única e representativa da classe feminina, preterindo movimentações sociais as quais retirassem de si o poder étnico-racial e econômico para oprimir. A desmaterialização da aliança política, trata-se de um iminente perigo. Afinal, quando reduz-se experiências políticas à sentimentos, os quais pertencem à uma natureza intangível, a materialidade da ação política, compromete-se.
Sororidade: Breve História das Alianças Femininas
Ao longo da História, as alianças constituídas por mulheres ante à opressão patriarcal, exibiram-se diversas. No âmago de inúmeras civilizações, fêmeas humanas desafiaram, conjuntamente, os dogmas sociais que corroboravam à manutenção do jugo masculino. Desde às ocorrências no imaginário mítico, à resistência feminina durante a Baixa Idade Média e os agrupamentos de mulheres as quais erguem-se ante à opressão no Oriente Médio, o potencial feminino sempre fora estimulado na ânsia por revoluções ou não-submissividade social.
Contudo, o funcionamento inerente à organização patriarcal, dispõe de constantes batalhas discursivas. Sob domínio hegemonicamente masculino, a História conta-se em modos distorcidos, os quais favorecem a disputa feminina e os arquétipos maledicentes os quais historicamente foram atribuídos às mulheres. Desde a dominação cristã na Europa medieval, a demonização de práticas religiosas pré-cristãs e da classe feminina, tornara a aliança entre mulheres um símbolo da revolta satânica a qual deveria ser continuamente combatida. Unidas, mulheres zelavam-se mutuamente, ainda que fossem politicamente acusadas de organizarem sabbaths satânicos e associações secretas demoníacas.
A aliança entre fêmeas humanas evoca simbologias ancestrais em culturas oriundas de todas as civilizações descobertas. Tendo sido vinculado à grande aquisição de poder, os movimentos auto-organizados por mulheres, suscitaram extremo temor nos sistemas patriarcais vigentes. A fêmea a qual optava por abandonar à adoração fálica e voltar-se às suas semelhantes, personificava-se tal uma traidora; herética a qual carecia de ser severamente punida. Por intermédio da constituição de estritas hierarquias entre mulheres, nas quais, as amantes da insubmissão eram completamente demonizadas e as submissas ao jugo masculino e cristão alocavam-se tal mulheres devotas, a amargura ante às associações femininas, fora historicamente semeada na psique das mulheres as quais mantinham a crença na providência patriarcal.
No século XXI, ínfimas adaptações ocorreram. Contudo, o cerne de tais hierarquias comportamentais, permanece em seu pódio habitual. As insubmissas, não mais tratam-se de bruxas, guerreiras ou feiticeiras, contudo, mulheres as quais erguem-se veementemente em prol da emancipação feminina e não comungam com a subserviência patriarcal. Entretanto, sob às faces de uma revolução liberal, as mulheres devotas perduraram, tornando-se aquelas as quais não anseiam por uma fidedigna emancipação.
A Problemática da “Hostilidade Horizontal”
“Precisa-se aprender que o oprimido também pode ser opressivo. Não apenas pode a oprimida partilhar, ainda que minimamente, dos status e privilégios dos dominantes às expensas de outras oprimidas.”
— Denise Thompson, “Uma discussão sobre o problema da Hostilidade Horizontal”.
Faz-se necessário conceber a premissa que, constantemente, obscurecem: “mulheres possuem status passíveis à opressão, podem utilizar-se de determinados privilégios relativos à classe e raça para sobreporem-se às demais. Determinadas mulheres corroboram e labutam em prol do sistema vigente”. Os processos de socialização feminina em um sistema primordialmente patriarcal, firmam-se na alienação gradativa das associações femininas e pertencimento à classe.
A fêmea humana, socializada como mulher, submete-se à frequente anulação do Ser enquanto instância potente e emancipada no mundo. Deste modo, a partir de mecanismos disciplinares que adestram psíquica e fisicamente, mulheres instruem-se em uma hierarquia indiscutivelmente fálico-patriarcal. Nesta, o macho e instâncias concebidas tais masculinas, alocam-se no ápice antagônico enquanto dominantes, portanto, a fêmea e instâncias concebidas tal femininas, relegam-se aos postos socialmente indesejáveis, rechaçados e vexatórios.
No escopo de tal premissa, a fêmea humana, cujo inconsciente atenta-se à inferioridade sócio-simbólica atribuída ao seu sexo, almeja a aquisição de poder na estrutura social, por intermédio da reprodução de perspectivas socializantes suscitadas sob a ótica masculina. No artigo produzido pela teórica Denise Thompson, intitulado “A discussion of the problem of horizontal hostility” (uma discussão sobre o problema da hostilidade horizontal), explicita-se dinâmicas opressivas que emergem nos círculos sócio-culturais experienciados por mulheres.
“Hostilidade Horizontal é o melhor método do heteropatriarcado para nos manter em ‘nossos devidos lugares’; nós fazemos o trabalho dos homens e suas instituições por eles… (…) nos faz direcionar nossa raiva — que surge de nosso estatuto marginal e subordinado no heteropatriarcado e que deveria ser dirigida à nossos opressores — à outras mulheres, porque sabemos que é mais seguro…”
— Penelope, 1992 in “uma discussão sobre o problema da hostilidade horizontal”.
Deste modo, para além da estratificação promovida pela Hierarquia Racial e Econômica, fragmentos da socialização feminina culminam em atuações comportamentais opulentas em inveja, sabotagem, ódio, competição e subordinação entre mulheres. Afinal, no cerne de uma sociedade patriarcal, a fêmea humana empenha-se, consciente e inconscientemente, na peleja em prol da aprovação masculina que, à luz de tal sistema, proporcionar-lhe-ia a divinizada redenção social. Contudo, torna-se explícito que somente uma seleta classe de mulheres poderá ascender aos moldes patriarcais, gerando assim, a atmosfera pérfida na qual fêmeas digladiam-se entre si, enquanto a hegemonia masculina retroalimenta-se e fortalece-se a partir de seus esforços.
Tratado por uma Sororidade Possível
Faz-se imperativo abdicar das perspectivas liberais e reformistas vigentes na concepção mainstream acerca da sororidade. Afinal, o inóspito resgate às noções místicas das alianças estabelecidas por mulheres, veta o potencial político, organizacional e materialista detido por tais elos. Não há sentimento comum às fêmeas humanas. Tampouco, relações equitativas e homogeneizadas entre mulheres. Suscitar a ótica ancestral ginocentrada, trata-se do marco-zero da instauração de uma sororidade possível. Pois, somente por intermédio de um confronto à concepção androcêntrica, poder-se-á conceber uma real aliança entre mulheres.
Socialmente, doutrinam mulheres a vivenciarem a experiência humana à luz de uma interpretação masculina. O macho enquanto arquétipo, exibe-se tal o grandioso portador da humanidade, sabedoria, justiça e beleza em seu grau mais elevado. Podendo somente este antagonizar-se à demais machos, estabelecendo-se tal um protetor. Deste modo, socializa-se mulheres para que priorizem as relações as quais estabelecem com homens. Alienam fêmeas de seu potencial revolucionário, o qual desenvolve-se grandemente quando em assembleia. Suscitam-nos a percepção de que demais mulheres tratam-se das pérfidas antagonistas as quais desejam tomar-nos as míseras migalhas ofertadas pelo regime patriarcal.
O rompimento com a hegemonia masculina perpassa instâncias psicológicas, sócio-culturais e econômicas. Os agrupamentos femininos, quando não psicologicamente, são financeira e politicamente sabotados. Contudo, as armadilhas estruturadas pelo Patriarcado, por intermédio da socialização feminina e instauração de arquétipos sombrios a respeito do Ser feminino, assombra-nos e conduz-nos ao isolamento sócio-político ou à relações superficiais com demais mulheres. Carecemos de revisitar os círculos os quais firmamos e resgatar os princípios da coletividade feminina. Faz-se notório estabelecer uma aliança política antirracista, antissexista, antilesbofóbica e ginocentrada.
Assumir a detenção de privilégios relativos à raça e a classe e, factualmente, direcionar-se à estruturação de associações nas quais mulheres e crianças tornem-se política, social e economicamente priorizadas, rumará à um futuro no qual, indubitavelmente, possa-se estruturar uma sociedade em que a aliança entre mulheres erga-se em toda a sua pulsão revolucionária. Não haverá sororidade, enquanto não for-nos possível bradar ante à opressão experienciada por demais mulheres e dedicar-nos à edificação de um movimento sócio-político verdadeiramente emancipatório e interseccional.
Só uma nota: nós brasileiros somos considerados "não-ocidentais"(non-western). Descobri isso recentemente num fórum de geopolítica enquanto procurava dados sobre Império…