No período atual, o senso comum difundido através das mídias sociais sustenta discursos pautados nas recentes percepções pós-modernas e passíveis ao liberalismo discursivo. Dentre as inúmeras premissas, sustenta-se a suposição de que indivíduos marginalizados detêm privilégios em detrimento de outros indivíduos marginalizados. A partir de uma lógica simplista e não baseada na materialidade, inúmeros indivíduos estão a catalogar outros métodos de opressão e mecanismos de controle, como “privilégios” das classes que à eles são submetidas. Em tal cenário, impossível não recordar da premissa equivocada de que há privilégio em ser assinalada como mulher em uma sociedade patriarcal. Contudo, quando imergimos em uma franca análise da realidade, acompanhada de avaliações quantitativas e teóricas, percebemos a falácia que se instaura através de um discurso supostamente progressista.
“Privilégio” tornou-se a palavra-chave para o efetivo silenciamento de classes que outrora eram teórica e socialmente compreendidas como oprimidas. Se anteriormente ser negro no Brasil era uma existência cruel, hoje temos o “privilégio de sermos ocidentais”. Se anteriormente ser mulher era sinônimo de opressões históricas, hoje temos “privilégios porque nossa mulheridade é aceita”. O cerne do martírio de uma classe é descaracterizado e, repentinamente, já não podemos definir as amarras de nossa própria opressão. Contudo, neste contexto superficial, muitos esquecem-se de que o cruzamento dos sistemas de opressão produz formas diversificadas e sofisticadas de violência sobre todas as classes subalternizadas.
Ser mulher jamais será um privilégio, pois a percepção do sexo biológico feminino atrelado à socialização no gênero é, justamente, a marca de nossa opressão. O que reside nesta sociedade é, indubitavelmente, o privilégio masculino e caucasiano. Não há privilégio em pertencer a grupos étnicos que descendem de povos africanos que vieram às Américas para a escravidão e o mártirio. Não há privilégio em portar uma vagina em uma sociedade declaradamente misógina. Modelos de opressão diversificados não demarcam privilégios, somente acentuam modalidades diferentes de um mesmo extermínio.