No escopo das construções sócio-históricas e políticas, as mitologias servem enquanto base psicológica e social para a perpetuação de estereótipos, crenças e espaços sociais nos quais oprimida(o)s e opressora(e)s são estrategicamente alocada(o)s. No que tange às relações raciais no Brasil, diversos mitos foram suscitados a fim de alocar as populações negras no status de passivas frente à própria opressão: dentre eles, o mito da democracia racial. Entretanto, contrariamente ao que pensam, os mitos produzidos pela colonialidade no escopo de uma sociedade patriarcal e racialmente hierárquica, não são facilmente perceptíveis e não foram completamente abolidos sequer entre a(o)s oprimida(o)s.
Nesse contexto, percebe-se que há um interesse político na manutenção da crença em uma suposta passividade negra, que culmina na especulação de que negras e negros ocupam um espaço social subalterno porque não estão humanamente aptos à ascensão. O mito da passividade, neste aspecto, serve igualmente para inutilizar os esforços das populações femininas negras frente ao racismo e à opressão patriarcal que se perpetua dentro e fora das comunidades negras. Não obstante, um exemplo tangível se trata do modo como indivíduos descredibilizam a produção de intelectuais negras, ao afirmar que “o feminismo não inclui mulheres negras” ou que “o feminismo radical é composto apenas por brancas”. Deste modo, percebe-se que socialmente algumas e alguns permitem apenas dois polos: ou descredibilizam a produção de mulheres negras ou as utilizam como token, quando recebem acusações de racismo.
Por outro lado, o mito da passividade tende a ser utilizado de modo divergente na concepção da branquitude. A mulher caucasiana, na qual inspira-se o modelo de feminilidade imposto em uma sociedade patriarcal de ordem eurocêntrica e pós-colonial, tende a ser representada como o suprassumo da pureza e da ingenuidade, servindo como modelo antagônico ao homem caucasiano, que ocupa espaços de poder e dominação social. Tal mito compõe o imaginário das relações de estratificação sexual nas etnias caucasianas, exibindo o local inferior no qual mulheres brancas foram alocadas pelos homens de mesma etnia. Contudo, este mito serve igualmente de modo pernicioso dentro e fora do feminismo, a fim de promover uma ideação de “inocência” e “passividade” das mulheres brancas nas relações raciais e, principalmente, na reprodução dos mecanismos de opressão racistas sobre mulheres negras.
“As lágrimas das mulheres brancas são especialmente potentes… porque estão ligadas ao símbolo da feminilidade”, explica Ajayi. “Essas lágrimas estão saindo dos olhos daquela escolhida para ser o protótipo da feminilidade; a mulher que foi pintada como desamparada contra os caprichos do mundo. Aquela que obtém a maior proteção em um mundo que faz um trabalho de merda em valorizar as mulheres.”
— Artigo traduzido adpt: “Como mulheres brancas usam lágrimas estratégicas para silenciar mulheres racializadas“, de Ruby Hamad
É equivocada a premissa de que mulheres brancas “aceitam” a opressão racial de mulheres negras como método de “suborno”, tal não se beneficiassem diretamente dela. A estratificação sexual de mulheres se trata de um modelo implementado pela supremacia masculina, contudo, as relações coloniais e raciais tornaram este emaranhado em algo complexo e delicado. Autoras como Françoise Vergès, Angela Davis e Lélia Gonzalez abordam tais temáticas em perspectivas históricas e estruturais. Afinal, o privilégio branco, que conferido às mulheres brancas por conta de uma hierarquia racial implementada pela supremacia masculina branca, lhes traz benefícios raciais reais. Viver o privilégio racial, em uma sociedade na qual mulheres negras alocam-se na base social, econômica e cultural não se trata de “aceitar um suborno passivamente”; mas sim, de experimentar uma estrutura social que lhes favorece e a qual muitas não desejam confrontar.
Em uma sociedade racialmente estratificada, mulheres brancas experimentam o poder racial nas micro e macro relações. Independente de quem as atribui, ele existe e pode ser estatisticamente comprovado. Negar tais premissas e abraçar o mito da passividade pode trazer maior conforto existencial, mas embarga as possibilidades de confrontarmos o racismo no feminismo e acabarmos com a hostilidade horizontal e desigualdade social e racial entre mulheres. Não deve-se jamais esquecer que mulheres negras e brancas não partem do mesmo local nesse discurso, tal como não foram as mulheres negras que deliberadamente optaram por afastar-se de mulheres brancas. Haja vista o racismo sequer nos permitir a escolha. Faz-se necessário compreender os locais ocupados dentro da estrutura racial e encarar os locais sociais que para nós foram construídos. Faz-se necessário comprometer-se com uma postura verdadeiramente antirracista.
Só uma nota: nós brasileiros somos considerados "não-ocidentais"(non-western). Descobri isso recentemente num fórum de geopolítica enquanto procurava dados sobre Império…