Antes de aprofundarmos a discussão, desejo comunicar que estou abordando a temática à luz das teorias feministas. Especialmente, a partir de autoras como Dee L. R. Graham, Andrea Dworkin, Audre Lorde, bell hooks e Catharine A. MacKinnon. Fazendo notório que não estou abordando sob um prisma necessariamente psicológico ou psicanalista.
Quando afirmei que mulheres confundem conceitualmente o anseio pela vulnerabilidade com o desejo pela submissão, estava fundamentando o meu argumento nas premissas trazidas por autoras como Dee L. R. Graham. A grosso modo, a autora aborda o fato de que, por vivermos em uma sociedade hiperviolenta na qual mulheres estão constantemente em estado de sítio e horror sexual, somos condicionadas a incorporar aspectos que satisfaçam, apaziguem e mimetizam (imitem) as noções que nossos abusadores desenvolveram historicamente sobre nós. Não fugindo, decerto, da sexualidade.
Como mulheres, estamos inseridas em um contexto social onde o modelo sexual hegemônico é masculino. E o que isso significa? Significa que toda a percepção coletiva que desenvolvemos sobre o sexo e o ato sexual, seja religiosa, cultural, médica ou até mesmo subjetiva, está atravessada pelo discurso da dominação masculina. Ou seja, o corpo dos homens é o “corpo universal”, sendo suas necessidades e modos de satisfação sexual considerados superiores aos modos de satisfação sexual femininos. Quer uma prova disso?

Como aprendemos através do livro “Prazer Censurado: Clitóris e Pensamento” da Catherine Malabou, que estará sendo abordado em nossa imersão, o clitóris foi historicamente ignorado nos estudos anatômicos. Ora sendo visto como um fator indiferente, ora como uma das possíveis causas dos supostos “problemas de nervos” femininos. Para que se tenha ideia, um dos primeiros estudos gerais da anatomia do clitóris foi realizado há 20 anos. Sim, em 2005. (Vide “Anatomia do Clitóris” de Helen O’Connell).
Além disso, quando abordamos as práticas sexuais mais comuns nas sociedades onde impera a dominação masculina, o clitóris é ignorado ou visto como elemento secundário. Nessas relações, a vagina se torna protagonista por ser vista como um orifício através do qual os homens podem obter prazer.
Dessa forma, o imaginário sexual patriarcal se dá através da valorização do pênis e da dimensão sexual masculina (penetrar, ejacular) e da repulsa pela dimensão sexual feminina (umidade, fricção). Percebemos, por exemplo, que a coito é considerado sexo hegemônico, excluindo a experiência lésbica ou de mulheres que não realizam sexo penetrativo.
Culturalmente, músicas, produtos audiovisuais e aspectos religiosos definem o sexo penetrativo como superior, tal qual a pornografia. O protagonismo do pênis no sexo heterossexual é absoluto. Mais uma vez, considerando as práticas sexuais focadas no clitóris como inferiores ou circunstanciais (ou seja, que ocorrem apenas visando conseguir a penetração). Então, surge o questionamento: e onde está o desejo pela vulnerabilidade nisso?
Como cita Dee L. R. Graham, mulheres são socializadas a partir da rejeição primordial. Podemos considerar, por exemplo, as inúmeras culturas nas quais filhas são desvalorizadas, sendo preferível ter filhos do sexo masculino. Ainda nos tempos atuais, tal prática ocorre entre as famílias. Mulheres crescem e se desenvolvem em um ambiente onde são socialmente renegadas, não são preferidas, os atributos vinculados às mulheres são em geral negativos (submissão, passividade, retraimento) e até mesmo a anatomia feminina é repudiada (ódio à vulva, aos fluídos, violência obstétrica).
Nesse contexto, crescemos em busca de espaços nos quais possamos nos sentir acolhidas e onde seja possível experimentar a real subversão feminina: receber. Pois mulheres são transformadas em eternas servas, aprendendo a dedicar-se aos cuidados de familiares, amigos, doentes e relacionamentos. Mulheres raramente recebem, em especial, negras. A cultura patriarcal criou uma abordagem paradoxal onde mulheres são concomitantemente taxadas como “vulneráveis”, mas não podem acessar o espaço da vulnerabilidade saudável e criativa, assim como também são privadas de receber cuidado verdadeiro.
Nessa curiosa equação, mulheres seguem se sustentando sobre seus vazios enquanto tentam preenchê-los através do comportamento servil aos demais, (ser uma boa mãe, uma boa filha, uma boa namorada). No cenário sexual, aprendemos que uma das únicas formas de receber amparo, afeto e alguma espécie de cuidado, é através da satisfação sexual de parceiros masculinos. Através do sexo.
Por vezes, aquilo que desejamos é a experiência do contato visceral. Vivenciar a nossa sexualidade em nossos próprios termos, ter atenção sensorial/clitoriana/erótica e experimentar os limites dos nossos desejos. Contudo, somos forçadas ao modelo sexual masculino, onde não somos protagonistas e tampouco experimentamos muita agência sexual. Conheço inúmeras mulheres heterossexuais que relatam o quão seus parceiros são rígidos e pouco disponíveis à mudanças ou a fazer sexo “do jeito delas”. Enquanto muitas mulheres em relações heterossexuais tendem a modificar até mesmo a forma expressa de seus desejos para se adaptar aos parceiros.
Nesse contexto, a confusão conceitual acontece. Passamos a associar a possibilidade de experimentar o cuidado, assim como de ter nossos corpos acessados intimamente, com a submissão. Pois, ao submeter-se, vivenciamos a ilusão de que receberemos cuidado e entrega íntima, como em uma troca onde permitimos que homens se sintam superiores sexualmente através dos nossos corpos, para que recebamos “aftercare” (conceito do BDSM, ato de cuidar, banhar, limpar o submisso após a sessão). Porém, como nos exibe Graham, é politicamente estratégico que os homens apenas sejam “afetuosos” em contextos sexuais. Isso é parte do adestramento (brincadeiras à parte com Babygirl).
Gostaria de finalizar a discussão por hoje com alguns questionamentos ainda mais provocativos: às vezes confundimos desejos por sensações intensas com supostos desejos por violência. Quantas mulheres são tocadas e estimuladas em níveis, pressões, temperaturas e dinâmicas diferentes? Por que será que, quando se pede algo intenso, o pensamento primeiro é a violência, a incisão, a velocidade? Por que nunca fomos expostas às múltiplas possibilidades sexuais que existem para os nossos corpos com clitóris?