Written by: Feminismo Material

Do only fans aos clubes de strip-tease: o sonho americano ainda é de plástico

O filme Anora é um retrato da exploração dos mais ricos sobre os mais pobres, mas peca ao manter o male gaze e ao não deixar que as mulheres na indústria do sexo contem a própria história
Yasmin Morais

Há níveis tão intensos de vulnerabilidade que só podem ser captados por completo nas entrelinhas. Anora (2024), dirigido pelo cineasta estadunidense Sean Baker, integra um gênero cinematográfico muito específico, onde o coração está escondido à vista. 

Conhecido por obras como Tangerine (2015), The Florida Project (2017) e Red Rocket (2021), o diretor, lembrado por narrativas sobre a comunidade LGBT+ e pessoas na indústria do sexo, retorna às telas com Anora, nos conduzindo à história eletrizante de uma dançarina erótica em sua versão pessoal de um sonho americano. Indicado em onze categorias ao Oscar, o filme levou para casa alguns dos prêmios mais cobiçados, como de Melhor Diretor, Melhor Atriz e Melhor Filme.

Vencedor da Palma de Ouro de 2024, feito não realizado por nenhuma obra norte-americana há mais de uma década, Anora é um misto curioso e sensível do cinema expressivo da década de 1970 e dos takes ágeis de filmes populares dos anos 1980 como Um Príncipe em Nova York (1988).

Anora Mikheeva (Mikey Madison), mais conhecida pelo pseudônimo de Ani, é uma jovem uzbeque-americana, que entra em cena como stripper de uma casa noturna de luxo em Nova York. Certa noite, Ani é convocada a prestar serviços à Ivan ‘Vanya’ Zakharov (Mark Eydelshteyn), herdeiro de uma família de oligarcas russos em intercâmbio nos Estados Unidos. O que parecia ser a grande oportunidade de sua vida, se torna uma jornada eletrizante rumo ao fracasso de seu sonho americano.

Penetrando em um universo soturno e mediado pelo sexo, as cenas iniciais nos conduzem a um cenário no qual corpos femininos se fundem à paisagem neon, remetendo aos já criticados takes ginecológicos de algumas direções masculinas. Somos capturados pela ambiguidade do olhar, onde se deseja construir uma perspectiva humanizada sobre as mulheres na indústria do sexo, mas os planos seguem centralizados em corpos sem rosto e em histórias não-contadas.

Ainda nos primeiros minutos, conhecemos o backstage do clube em que a personagem principal trabalha. Apesar de citações posteriores ao temor do estupro, o roteiro escolhe estrategicamente não abordar questões recorrentes na indústria do sexo, como clientes insistentes, stalkers, adicção em entorpecentes, tráfico humano e exploração por parte de donos de clubes. A história de Sean Baker é muito mais romântica, não exibindo as vísceras da experiência de inúmeras mulheres na indústria do sexo estadunidense. 

Relembrando as críticas feitas ao filme sobre a problemática do male gaze, é impossível não se recordar da ausência de coordenadores de intimidade na produção — profissionais cuja finalidade é prevenir excessos ou abusos sexuais nos sets, garantindo a segurança dos atores e figurantes. Numa narrativa que se propõe a um papel político de defesa das pessoas na indústria do sexo, a ausência dos coordenadores, em especial após o fenômeno #MeToo, surpreende e intriga.

Na narrativa, a divisão simbólica entre Ani e Anora, nome e pseudônimo que trazem à tona aspectos diferentes da personagem, nos é apresentada nas cenas onde ela, tão sedutora e imponente na noite, se mostra frágil, exausta e sem perspectiva, ao retornar todos os dias ao seu apartamento precário no Brooklyn. A honestidade visceral da performance de Mikey, assim como a beleza de sua construção, não está na expressão descritiva de seus sentimentos ou história, mas sim naquilo que escapa nas entrelinhas, nos olhares cansados e em suas relações superficiais.

Anora, que prefere ser Ani, é cada vez mais seduzida pelo estilo de vida de Vanya, que a propõe diversos encontros sexuais e uma semana exclusiva pelo valor de quinze mil dólares. Vanya é um típico jovem privilegiado crescido em uma família de oligarcas russos, esbanjando dinheiro como se não valesse nada, enquanto Ani se vê cada vez mais deslumbrada com o mundo que lhe é apresentado. Ao ser pedida em casamento pelo rapaz, que na verdade estava interessado em um green card, a personagem pensa finalmente ter deixado para trás uma vida insatisfatória. Sua ingenuidade se exibe de maneira tímida nas nuances da narrativa, mas deixa rastros em sua crença no casamento e na suposta salvação que viria através do rapaz.

O que é para Vanya uma semana de férias, que se tornam meses, para Ani é a grande chance de uma vida. Nessas condições, se torna impossível não perceber a crítica à exploração dos mais ricos sobre os mais pobres. Vanya se vale não apenas do corpo da personagem, mas de seus sonhos, de seus sentimentos e de sua presença. Assim como nas relações entre os ricos e aqueles que sustentam os seus caprichos, Ani está à serviço de seu então marido, de maneira profundamente utilitarista e desinteressada.

Quando os capangas Toros (Karren Karagulian), Garnik (Vache Tovmasyan) e Igor (Yura Borisov) entram em cena, culminando com a fuga de Vanya, Ani vê seu sonho americano ruir ao descobrir que a família de seu noivo deseja a anulação do casamento sob a irrisória indenização de 10 mil dólares. A notícia não é para ela o fim de um esquema, mas sim a morte do sonho e de sua recém-descoberta esperança. Nesse ínterim, a tentativa de captura da personagem por parte dos capangas é extensa e apesar de possuir uma veia cômica, não funciona. Em especial, através das piadas de duplo sentido sobre violência sexual.

Apesar disso, o filme brilha no thriller que se segue à busca de Vanya na noite nova-iorquina. O aprofundamento da relação entre Ani e os três capangas flui da comicidade à consciência de classe. Toros, que abandona um batizado para ir atrás de Vanya, é um empregado antigo da família, responsável pelos cuidados do jovem que, apesar de estar na maioridade, ainda age de forma inconsequente. Garnik e Igor são também empregados, dispostos aos desejos da família Zakharov. Seja para o prazer, para os negócios sujos ou para o cuidado de seus herdeiros, os ricos se servem da força de trabalho, dos sonhos e da vida dos quatro personagens ao longo do filme.

Não obstante, a própria abordagem nos faz questionar até que ponto não há um certo utilitarismo na perspectiva empregada às mulheres na indústria do sexo. Por mais que haja um aprofundamento interessante nos aspectos emocionais da personagem principal, pouco se sabe sobre a sua história antes da prostituição — quais são as suas aspirações, seus objetivos, o que a conduziu aos clubes de striptease. Além disso, também nos questionamos como Anora de fato contribui para uma narrativa real, feita à luz das mulheres que estão ou estiveram nesse contexto? Um homem branco, norte-americano e economicamente privilegiado, consegue captar as nuances mais íntimas da vida de mulheres imigrantes e vulneráveis em clubes de sexo? Ou seria este mais um caso de olhar colonial, no qual diretores privilegiados se apropriam das histórias das comunidades negras, LGBT+ e imigrantes para se tornarem referência?

Essas ambiguidades assustadoras e fascinantes também nos capturam na relação de Ani e Igor, capanga que está a todo momento tentando fazê-la sentir-se mais confortável. Quando a personagem enfim se percebe no confronto final e precisa encarar a família do marido, ela troca de máscara, fala russo, como em uma última tentativa de ser aceita. Mas é repreendida pela matriarca da família e relegada ao lugar de prostituta. A sutileza da falta na personagem e seu desespero implícito ainda estão presos na minha memória.

As cenas mais emblemáticas, quando Igor e Ani se encontram sozinhos e discutem sobre as particularidades de seus nomes, deixam escapar a sutileza da aproximação entre os dois. Igor, um homem sem vergonha de quem é, Ani, sempre mascarada. Agora, despindo-se pouco a pouco de sua couraça, conhecendo um espaço de vulnerabilidade sensível. A personagem conheceu cenários de profunda exploração ao longo de sua vida. Questionando se Igor a teria estuprado quando teve a chance, como “qualquer homem teria feito”, ela se surpreende ao ouvir um “não”. 

Quando Ani está no carro com Igor prestes a deixá-la em seu apartamento, ele lhe entrega o anel de noivado que lhe foi tomado por um dos capangas. Ani observa aquele homem enigmático e decide que a maneira correta de retribuí-lo seria com sexo, com aquilo que os homens sempre tomaram de si, aquilo que ela sabia fazer. Mas não soube como fazer, quando Igor segurou o seu rosto e tentou beijá-la, num gesto de sutileza que aniquilou Ani e deixou que Anora vazasse e escapasse para a tela.

Anora surge, sensível, frustrada, humana na cena final. Enfim, a conhecemos. Mas apenas quando acaba.

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Tags:, , Last modified: 8 de abril de 2025