Este texto é um relato anônimo enviado para o quadro “relatos de uma seguidora”.
Durante toda a minha vida eu me senti como um peixe grande preso no corpo de um peixe pequeno — nasci mulher pobre no Norte do Brasil. Sou filha de família religiosa, mas sempre fui questionadora. Enquanto boa parte das meninas no meu círculo social estava ocupada demais pensando sobre garotos, feminilidade e profissões ditas “femininas” (modelo, cantora, apresentadora da MTV e etc), eu era o patinho feio com a cara afundada nos livros. Desprezada pelas mulheres da minha família — que queriam ditar como eu deveria me comportar — e também pelos garotos. Na adolescência, pensei que fosse lésbica. Ouvia com frequência que era “menina macho” porque não gostava de me depilar, de me maquiar e preferia roupas confortáveis.
Então comecei a sair com garotas por volta dos meus quatorze anos, tive uma namoradinha de escola que foi o meu primeiro interesse amoroso. Passava as tardes na casa dela e um dia fomos flagradas pelo pai, o que me fez não poder mais ir lá. Beijei muitas outras meninas, também me envolvi com meninos, mas sempre breve. Porque eu era uma “menina macho”, nem um pouco feminina, então era desprezada. Não nego que em partes foi bom, porque não passei pelas violências que tantas adolescentes passam em relacionamentos. Tive tempo de descobrir a mim mesma, o meu prazer, sem tantas interferências.
Mas nem tudo são ganhos, há também muitas perdas. Com a minha descoberta do feminismo por volta dos dezenove anos, me dei conta de que a rejeição que sofria tinha nome: misoginia. Ser uma mulher fora do padrão me deixou à margem, coisa que fui percebendo de maneira mais profunda após conhecer o trabalho da Valeska Zanello no livro A Prateleira do Amor.
Com o passar do tempo, fui percebendo que não era lésbica e hoje posso dizer que também não sou bissexual. Eu gosto de homens. Mas vi nas mulheres a única fonte de carinho, amor, acolhimento e prazer. Não usava nenhuma mulher, eu também era carinhosa, companheira e retribuía tudo o que recebia. Mas algo em mim não estava certo, hoje sei o que é. Eu gosto de homens, mas não sei ser uma mulher.
Porque a minha vida toda quiseram me impor ser um peixe pequeno, quando eu sempre fui um dos grandes. Nunca me enquadrei na feminilidade e no que se espera de uma mulher, sempre fui autônoma, com ímpeto e muito desejo. Foi um longo caminho até aqui, até me aceitar como uma pessoa do sexo feminino que se sente atraída por homens, mas não nego que ainda odeio ser mulher. Principalmente porque não posso expor e impor o meu desejo como os homens podem. Parece que não existe saída da Prateleira e que, se desejamos homens, ainda que à nossa maneira, só podemos avançar se formos “escolhidas”, se passarmos pela “triagem” deles.
O amor e o desejo das mulheres vale menos, porque a oferta é constante — que mulher não quer ser amada, tocada, sentir prazer? Estamos disponíveis, então eles têm tanta escolha. Tanta opção. Eu sinto ódio. Ódio porque sinto que não posso ser eu por completo, porque preciso do “aval” deles se quiser viver algo à dois ou à três. Eu odeio tudo isso. Mas saber que outras mulheres também se sentem assim e estão criando as suas maneiras me dá forças.