Nos últimos dias, a revista The Economist publicou uma matéria que abordava a crescente preferência por meninas em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Citando, sobretudo, a expressa reação de mães e pais nas redes sociais a partir dos resultados de seus “chás revelação”. Segundo a matéria, vídeos que demonstraram frustração de genitores ao descobrirem que o sexo do bebê esperado era o masculino se tornaram tão populares ao ponto de fomentar a criação do termo “decepção de gênero” — que ocorreria quando os pais concebem um filho de sexo indesejado.
Tal fenômeno cultural tem intrigado pesquisadores. Afinal, historicamente, meninos têm sido a preferência de parte considerável dos casais em todo o mundo há milênios, tendo sido inclusive privilegiados por políticas que incentivaram o extermínio de pessoas do sexo feminino através de um controle de natalidade baseado no sexo dos bebês em países como China e Índia.
“Aproximadamente 50 milhões de meninas a menos nasceram desde 1980 do que você naturalmente esperaria, de acordo com cálculos da The Economist. No pior ano, 2000, houve cerca de 1,7 milhão de nascimentos masculinos a mais do que deveria haver. Tão recentemente quanto 2015, o número de nascimentos masculinos em excesso ainda estava acima de 1 milhão —o que sugere que um número semelhante de meninas não nascidas deve ter sido eliminado.” (Trecho de matéria da Folha de São Paulo)
Somado aos fatores, a misoginia é um dos grandes pilares na preferência histórica por meninos. Pois, em diversos países em desenvolvimento, ter filhas significa sofrer maiores sanções como a possibilidade de sequestros, abusos e perda da força de trabalho masculina. Além disso, mulheres têm sido culturalmente desvalorizadas desde a fundação do Patriarcado, como aprendemos através das obras da historiadora Gerda Lerner. As narrativas construídas sobre mulheres tendem a desvalorizá-las e inferiorizá-las, além de mascarar as suas contribuições notáveis à história humana no intuito de reduzir a presença feminina ao espaço privado e familiar.
Entretanto, nos últimos anos, a preferência por meninos têm sofrido modificações em diversos países — especialmente por conta dos números apresentados. Segundo estatísticas, meninos tendem a ter um desempenho menor na vida educacional ainda que recebam incentivos, possuem maior tendência ao comportamento violento e antissocial, além de demorarem mais tempo para sair da casa dos pais e iniciarem uma vida autônoma. Vale salientar que segundo pesquisadores como Jonathan Haidt, muitos homens tendem a ter sua juventude consumida por vícios, como em jogos, pornografia e apostas, elevando o tempo para que consiguam estabilidade socioeconômica.
Além disso, como apresentado por mim na pesquisa acadêmica “I NEVER WANNA MISS YOU AGAIN: Uma análise da utilização do Tik Tok na comunidade RedPill no Brasil”, inúmeros meninos e homens têm pendido ao radicalismo político, religioso e digital, apoiando grupos extremistas que defendem a inferioridade de negros, mulheres e LGBTs. Tais comportamentos têm servido como indícios da razão pela baixa na preferência por meninos nos casais atuais.
Contudo, não se deve esquecer que meninas seguem encabeçando estatísticas de violências e vulnerabilidade social. A recente predileção não afeta as desigualdades vividas pelas mulheres. Na verdade, as acentua. Pois, uma das razões pelas quais a preferência por meninas têm aumentado é a crença de que mulheres são mais suscetíveis aos padrões de gênero, sendo mais “amáveis, cuidadoras e protetoras”. Dessa forma, inúmeras famílias têm preferido meninas na intenção de tê-las como futuras cuidadoras de idosos e doentes.
“A preferência por meninas pode não ser um sinal de emancipação, mas um reflexo de papéis de gênero duradouros. A suposição de que as filhas serão mais atenciosas, enquanto os filhos se tornarão distantes, está enraizada mesmo nas sociedades mais igualitárias. Na Dinamarca, Noruega e Suécia, onde as mulheres são relativamente bem representadas tanto nos negócios quanto na política, os casais, no entanto, dão maior importância a ter pelo menos uma filha do que a ter pelo menos um filho. Alguns sociólogos postulam que isso ocorre porque as filhas são muito mais propensas do que os filhos a cuidar de pais idosos que vivem sozinhos.” (Trecho de matéria da Folha de São Paulo)
Grosso modo, se pode dizer que a recente predileção por meninas se dá pela percepção geral da maior utilidade das mulheres, não porque esteja ocorrendo uma mudança de paradigma na qual mulheres sejam de fato preferidas. Meninos e homens seguirão recebendo o amor incondicional da sociedade apesar de seus fracassos, enquanto meninas e mulheres seguem sendo “escolhidas” apenas por serem úteis, oferecerem mais serviços e “demandarem” menos cuidados.
Ao analisarmos o fenômeno por lentes feministas, perceberemos que a autora e feminista radical Andrea Dworkin segue correta: “todo homem deseja uma mulher para ser a sua escrava” e todas as pessoas seguem desejando usufruir do trabalho de cuidado de uma mulher. Ainda que isso envolva literalmente gerá-la na intenção de tê-la como escrava.