Written by: Feminismo Material

Você é acompanhante perfeita

No mês de janeiro deste ano, um filme promissor estreou de maneira despretensiosa. Companion ou Acompanhante Perfeita (2025), thriller estadunidense dirigido por Drew Hancock, nos conduz à história de Íris (Sophie Thatcher), uma jovem perdidamente apaixonada por Josh (Jack Quaid), um rapaz que conheceu durante uma ida trivial ao supermercado e com o qual mantém um relacionamento. Quando ambos viajam à casa de campo do namorado de uma amiga em comum, uma série de acontecimentos perturbadores se desenrola e nos exibe a chocante realidade. 

Íris, que de início aparenta ser apenas uma garota à moda antiga, dócil, feminilizada e curiosamente dotada de um visual dos anos 1950 que hoje seria descrito como coquette, não é um ser humano. Mas sim, um “robô acompanhante”, nas palavras do então namorado Josh, seu comprador, um “robô que também fode”. 

Captura de tela / Companion (2025)

Adquirida através da empresa fictícia Emphatix, Íris foi programada para amar, servir e manter relações sexuais com qualquer homem que a compre, configure e “estabeleça vínculo amoroso”, isso te recorda alguma coisa? Ao decorrer da história, percebemos que a sua personalidade, comportamento e até mesmo a porcentagem de inteligência e auto consciência que pode utilizar, era controlado por Josh — que além de “preferi-la” com apenas 40% do intelecto, também optou por sua natureza hiperfeminina, dócil e servil.

Contudo, um dos pontos mais perturbadores reside no fato de que Íris, até ser utilizada para concretizar um plano vilanesco de Josh e sua amiga Kat (Megan Suri), pensava ser humana. Aquilo que para ele era apenas um roleplay, era a única vida que Íris, ainda crendo ser humana, pensava ter. Sendo a todo momento tratada como um objeto, inclusive em cenas nas quais é associada à “uma meia a qual homens podem usar para se masturbar”, a personagem vivencia um arco perturbadoramente similar ao vivido por incontáveis mulheres ao longo da história humana.

Afinal, da mesma forma que Íris, enquanto alegoria, foi programada digitalmente para amar e servir homens, tendo inclusive a sua inteligência e poder de ação limitados, mulheres foram submetidas historicamente às mesmas estratégias sociais a fim de que se tornassem escravas domésticas, ou, se preferir, acompanhantes perfeitas

Josh sentia-se compassivo, um “cara legal”, porque poderia ter cometido as “piores atrocidades” com Íris, mas preferiu ser “apenas um homem com uma namorada que pudesse controlar”. Durante um dos pontos centrais da trama, ele, que é um homem branco e jovem de classe média, senta-se em frente à Íris e diz, “sou o tipo de pessoa que a sociedade está contra, sou um cara legal e tudo o que ganhei foi um apartamento de um quarto e uma namorada robô”. 

Captura de tela / Companion (2025)

Nessa cena, percebemos que Josh representa uma classe cada vez maior. A de homens que cresceram sendo alimentados pelo mito da masculinidade plena, com a promessa de uma esposa dócil, filhos e um emprego estável, mas que agora se deparam com uma sociedade em estado de capitalismo tardio e uma estrutura social na qual mulheres não desejam estabelecer relações desiguais. Esses homens, cada vez mais ressentidos, se apequenam em sua misoginia na tentativa de promover regressos nos direitos sociais das mulheres, na intenção de obterem novamente o direito de possuir uma escrava doméstica.

Nesse ponto, nos deparamos com a interessante crítica construída a partir da personagem Kat, amante do dono da casa de campo. Quando dialoga com Íris em uma das cenas, afirma que a existência da personagem a faz sentir-se “substituível” porque ela faz tudo aquilo que Kat precisou fazer para se tornar relevante para um homem; servir, obedecer e ser sexualmente disponível. Em um mundo onde homens podem programar robôs acompanhantes hiperrealistas para serem suas mães, filhas, namoradas, escravas sexuais, serviçais e depósito emocional, qual é a serventia de uma mulher

Captura de tela / Companion (2025)

Ao refletirmos sobre esse ponto, percebemos que mulheres foram e seguem a ser reduzidas a objetos de uso masculino na sociedade atual. Os quais, assim como Íris, possuem a ilusão de serem humanas enquanto apenas estão seguindo a programação. De novo e de novo. Com novos homens, em novos contextos, mas ainda aprisionadas pela socialização feminina e as dinâmicas de poder patriarcais.

O arco da história se desenvolve rumo à emancipação da personagem. Um dos momentos de embate mais emblemáticos ocorre quando, mesmo após tomar o controle da sua própria programação, Íris não consegue matar Josh, evidenciando que o elo a aprisioná-la é também psicológico. Quantas mulheres, como bem nos evidenciam autoras como Dee. L. R. Graham, McKinnon, Rich e Marylin Frye, seguem amando, apoiando e defendendo homens como casta ainda que os índices de estupro, feminicídio e inúmeras violências contra a mulher somente aumentem? Como nos lembra Andrea Dworkin, nunca houve uma trégua de 24 horas sem estupro. No entanto, parte considerável de nós segue programada para amar homens.

Quando chegamos ao momento final da obra, após a libertação de Íris e sua fuga, a personagem se desfaz da pele sintética que envolve um de seus abraços — o qual havia sido queimado por Josh, e permite algo autêntico em si aparecer. Ao vislumbrar uma outra acompanhante ao lado de um homem em um carro, Íris lhe acena com o braço robótico, descoberto e corajoso, porque existem outras possibilidades para ela e para as mulheres.

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Tags:, , , Last modified: 5 de maio de 2025